Leitura nas plataformas: o que muda na cabeça do aluno da escola pública, por Lúcia Peixoto Cherem

Vivemos em um contexto da educação pública em que bibliotecas são consideradas obsoletas e em que bibliotecários, um artigo de luxo.

Rede Marista – Reprodução

Leitura nas plataformas: o que muda na cabeça do aluno da escola pública

por Lúcia Peixoto Cherem

            Estamos vivendo, no Estado do Paraná, uma nova proposta de leitura nas escolas públicas, tanto na Secretaria Estadual de Educação quanto na Secretaria Municipal de Educação, já há algum tempo, pelo menos desde o primeiro mandato do Governador Ratinho Júnior, em 2019, no que diz respeito à rede estadual. Achamos necessário lançar um olhar crítico sobre essas novas práticas adotadas e pagas com dinheiro público.

            Vivemos em um contexto da educação pública em que bibliotecas são consideradas obsoletas e em que bibliotecários, um artigo de luxo. Não há concursos para esses profissionais nas redes públicas de ensino. Em geral, são os próprios professores de língua portuguesa que se responsabilizam pelo espaço quando decidem levar seus alunos até lá para alguma atividade. No caso específico da Escola Municipal do Batel, o professor Miguel Baez, entrevistado por nós, tem um padrão na Secretaria Municipal da Educação e outro na Secretaria Estadual de Educação. Na verdade, Miguel é professor de Educação Física, mas sofreu um acidente que o impossibilitou de continuar com a sua função de origem. Então, foi designado a cuidar da pequena biblioteca da escola, receber os alunos, desenvolver atividades com eles. Sente-se bem na nova função e vê como algo importante ter esse espaço de concentração, leitura e trocas sobre os livros que leem, já que a escola não conta com local adequado para outras atividades. Não há um pátio específico para as aulas de educação física, por exemplo. É uma excelente escola central, o antigo Colégio Estadual 19 de dezembro,  que era estadual e que virou municipal sem ter as características necessárias para o acolhimento de crianças pequenas.

            Perguntei ainda se ele utilizava a nova plataforma Elefante Letrado, adquirida pela Secretaria de Educação do Município em 2024, e como ele via a sua utilização. Ele a considera como uma ferramenta a mais na formação das crianças, mas que não é capaz de substituir de forma alguma a leitura e a discussão de um livro na sua forma física, numa roda de leitura, por exemplo. Trata-se de uma atividade individual, o livro transformado em tela, e as perguntas sem possibilidade de respostas abertas. Ou seja, existe uma camisa de força para a interpretação daquele aluno que também não tem o à leitura que outras crianças tenham feito do mesmo texto, por exemplo. Leitura isolada de alguém que deve acumular um grande número de leituras para competir com seus colegas. Uma espécie de game literário.

            Outra professora entrevistada por nós, Fernanda Coitinho Silva, professora regente de uma turma do 2o ano da Escola Municipal Guilherme Lacerda Braga Sobrinho, Bairro Novo, Curitiba. Fernanda é também professora de Matemática do 6o ano, mas já tem uma boa experiência com a plataforma Elefante Letrado. Considera, em geral, os livros bem selecionados e de boa qualidade literária. Seguem uma possível progressão de nível de língua e idade. Há, por exemplo, títulos para os leitores iniciantes, sem texto, apenas com imagens. As crianças, na sua maioria, gostam de usar a plataforma e podem fazê-lo na sua casa. O número de livros lido é controlado pela professora regente e as respostas sobre os textos também são lidas por ela. Há um dispositivo que permite também a gravação da leitura do texto em voz alta pelo aluno. O que parece ser uma forma de avaliação da fluência, do ritmo da leitura, usando a tecnologia da plataforma. Armadilha perigosa: ler um texto com fluência não significa ter compreendido o texto. Temos milhares de não-leitores no nosso país que são capazes de realizar essa tarefa sem entender o que estão lendo!!! Outro problema: erros de ortografia também são encontrados, o que pode perturbar as crianças em fase de alfabetização… Fernanda também concorda que, como uma ferramenta adicional, pode ter sua função na vida dos alunos. Ela não demoniza a plataforma em si, consegue retirar dela o que é válido.

            Em relação à SEED, a situação é mais complexa: as plataformas de ensino funcionam para todas as disciplinas. Há sempre uma tela entre o professor e o aluno na apresentação do conteúdo obrigatório. Há também controle do trabalho do professor por uma central que recebe e contabiliza informações, tornando todo o trabalho um inferno burocrático e deixando pouco espaço para o que realmente interessa: a autoria das suas aulas e o empenho que todo profissional deve ter, dando a sua contribuição.  A tal da camisa de força é mais eficiente e presente no Estado, dando menos liberdade aos professores. Como se sabe, não é toda a escola pública que possui laboratório bem equipado para o uso de tablets durante as aulas. Ler texto longo na televisão da escola é impossível. Muitos alunos têm que ler no próprio celular, o que prejudica muito o estudo do texto e sua compreensão. Uma leitura linear não é suficiente para assegurar um estudo da materialidade linguística de um texto que funciona sempre em espiral, de forma complexa, mostrando sua argumentação ao longo do seu desenvolvimento, pedindo que estabeleçamos constantemente relações entre as ideias apresentadas. Conheci uma professora, há pouco tempo, que fazia xerox dos textos longos da própria plataforma e dava aos alunos, à moda antiga, com seus próprios recursos, para fazer o vai e vem da leitura, sublinhar o que era importante, promover a discussão entre os alunos, enfim, fazer o verdadeiro trabalho de professora de língua.

            Para o estudo dos textos literários, o Estado propõe a sua própria plataforma com títulos selecionados pela istração, sem levar em conta as sugestões dos professores de língua portuguesa, a Leia Paraná. Com uns 60 títulos em seu acervo, os livros propostos também contam com uma abordagem, como questões sobre os livros, com respostas de múltipla escolha, o que limita muito a interpretação dos leitores.

            A escolha política do atual governo, que serviu de base também para a escola estadual paulista, não é inocente: as plataformas custam dinheiro e o valor não é pequeno. Indico a pesquisa da Professora Carolina Batista Israel, professora de Geografia da UFPR, que tem um trabalho sério na área e revela todos os valores[1]. Esse dinheiro que é público, que vem do contribuinte, está servindo a grupos de educadores privados, que estão se beneficiando dessas vendas ao ensino público, que está esvaziando as bibliotecas físicas, que não contrata bibliotecários, que não renova seus acervos. Além disso, estão implantando a sua própria ideologia, pelos títulos selecionados, pelos valores ali veiculados, como se a uberização da sociedade fosse normal, como se educação financeira fosse mais importante que Filosofia e Sociologia. Tudo naturalizado. Ou seja, chega de pensamento de esquerda, esse sim ideológico. Uma noção muitorasa de ideologia.

            Quem perde com isso? O estudante da escola pública, que, em geral, não dispõe de muita verba para comprar livro e muitas vezes não tem biblioteca em casa. Além disso, com pais que trabalham muitas horas, com pouco tempo e disposição para propor uma atividade diferente do o às telas…do celular, da TV, do laptop… A leitura crítica, papel essencial da escola, está indo pro beleléu, ela é chata, não interessa, basta ler na superfície, não importa quem escreveu, em que momento histórico, em qual veículo de comunicação. Mas isso pode determinar o futuro desses alunos, dificultando seus estudos e sua vida profissional. Há autores por trás das plataformas, mas quem são na verdade, a serviço de quem estão trabalhando? A serviço do neoliberalismo que tem como meta a privatização das redes públicas de ensino, aos poucos, de maneira insidiosa e com embalagem de poderosa tecnologia, que nem sempre é sinônimo de inovação. Há uma proposta política, com ideologia, por trás, mas isso não é dito, não é revelado. Pais e alunos podem achar que estão se aproximando das escolas particulares, que o ensino melhorou… uma falácia muito bem estruturada que está enriquecendo grupos específicos.

            Ler é um ato complexo, não uma atividade que se adquire com idade certa com a alfabetização. Muitos alfabetizados não são leitores. Por que mesmo? Porque esses não leitores não conseguem perceber o ponto de vista daquele que elaborou o texto, sua linha argumentativa. Aquilo bate e não ressoa no leitor, se ele não for formado para isso: quando a gente está diante de um texto, é preciso um distanciamento para aderir ou não, aderir em parte ou rejeitar aquele pensamento. Quem não teve essa prática desde o ensino fundamental, pode ar pela escola e não se tornar leitor ! Esse é o papel do professor das humanidades: lidar com a ambiguidade, a complexidade da linguagem em sociedade, nunca desvinculada do mundo que nos rodeia. Levando em conta quem somos, a que classe social pertencemos, e o que queremos nos tornar. Por isso, é fundamental “leiturizar” as crianças desde o início da escolarização.

            O argumento da praticidade dessa “nova” postura conservadora pretende livrar os professores da abordagem crítica dos textos, como se esses profissionais fossem apenas portadores de conteúdos, como se não tivessem construído seu próprio percurso como leitores. As famílias que colocam seus filhos na escola pública devem ser informadas dessas alterações de conteúdo que simplificam a tarefa da leitura, que separam também completamente a prática de leitura dos textos didáticos e dos textos de literatura, como se essa última fosse delegada somente ao prazer, à fruição, ao lazer, muito em voga nas escolas particulares, sem a preocupação da discussão e da compreensão de suas várias camadas. Ler não pode se tornar uma distinção de classe, ler, ao contrário, pode ser um ato político e de descoberta do mundo em que vivemos. Todos têm direito a isso, como já nos disse há muito tempo Antônio Cândido, em seu Vários Escritos, no artigo “O direito à literatura”, de 1988.

            Ninguém deve permitir a perda dessa função primeira da escola: a leitura na sua plenitude. Pais e alunos, os mais prejudicados, terão que lutar por isso, assim como vários professores das redes públicas já estão fazendo.

Lúcia Peixoto Cherem – Professora aposentada do Curso de Letras da UFPR. Sócia fundadora da Ler.com, Associação de Leitura e Escrita do Paraná


[1]ISRAEL,Carolina Batista.Plataformas educacionais: o ensino digital como insumo para o mercado de dados, 2023. E mais uma informação que não é um detalhe: em 2024 e 2025 a Secretaria Municipal de Educação já desembolsou duas vezes R$ 4.500,000,00 para a compra da Plataforma de Leitura do Elefante Letrado, o que daria para adquirir inúmeros livros para as bibliotecas das escolas, indicados pelos professores responsáveis que conhecem bem seus alunos.

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