Barroso e a blindagem da indústria do descumprimento da lei trabalhista, por Rodrigo Carelli

O Ministro do STF atua como o kafkiano guardião da porta da lei a fim de impedir condenações na Justiça do Trabalho

Vítor Teixeira – Contee

Barroso e a blindagem da indústria do descumprimento da lei trabalhista

por Rodrigo Carelli

O Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso participou de evento para empresários no Guarujá, organizado pelo mesmo grupo que já o levou a Paris e a Roma, e resolveu falar “sobre um pouco de tudo”, partindo de generalidades sobre o mundo e sobre o Brasil, ando por piadas e causos, até chegar a questões mais específicas em várias áreas. 

Como se sabe, quando alguém pretende falar sobre tudo, corre o risco de tocar em assuntos sobre os quais não tem conhecimento. E foi o que aconteceu: o presidente do STF voltou a cometer equívocos sobre a Justiça do Trabalho, apresentando uma visão unidimensional: o ministro demonstra somente conseguir observar as relações de trabalho sob o prisma do empresariado, como alertamos tantas vezes em nosso livro.

No mesmo estilo da sua famosa frase “98% das ações trabalhistas do mundo são brasileiras”, Barroso afirmou que há uma indústria de reclamações trabalhistas criada por advogados. De forma deselegante, disse que, depois da rescisão contratual, na qual “o trabalhador recebeu o que tinha que receber, um advogado o encontra e diz assim: eu consigo mais uns caraminguás para você. E aí ajuíza a reclamação, pede equiparação, pede hora extra que não ganhou”.  Deixando de lado o deslize na elegância e na lealdade com a classe da advocacia, a qual compôs por tantos anos, percebem-se mais dois pontos importantes. O primeiro deles é a falta de consistência na afirmação, pois se o trabalhador recebeu tudo  o que tinha para receber, de onde sairão “os caraminguás” que a Justiça do Trabalho irá conceder? O segundo ponto está contido na resposta que o ministro tenta dar a essa pergunta: o trabalhador vai pedir a condenação da empresa em “equiparação”, “hora extra que não ganhou”. Aqui há uma contradição forte. O contexto de sua fala é o anúncio que o ministro fez de algo que estaria “ando abaixo do radar” dos empresários: uma resolução do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que regulamenta a homologação de rescisões pela Justiça do Trabalho. Barroso anunciou que agora a resolução permite que, “em qualquer caso, se estiverem de acordo e assistidos por advogado, a rescisão pode ser levada à Justiça do Trabalho que a homologa, ficando  proibido ajuizar ação trabalhista.” Nessa hora a plateia empresarial concedeu os únicos e efusivos aplausos durante toda a diversificada fala do presidente do STF. John Lennon teria ironizado que neste momento foi ouvido também o chacoalhar das joias da plateia. A contradição é evidente: como disse Barroso, “mais da metade das reclamações trabalhistas estão associadas às verbas rescisórias”. Ora, se mais da metade das ações são decorrentes de pedidos de verbas rescisórias, os “caraminguás” que virão de “pedidos de equiparação” e de “horas extras não ganhas” não serão objeto da rescisão, pois não são verbas rescisórias, e não terão sido discutidas na homologação pela Justiça.

Aqui cai o maior pressuposto de Barroso, que é o de que empregadores que pagam tudo sofrem com ações trabalhistas: se mais da metade das ações são por falta de pagamento de verbas rescisórias, isso só pode se dever ao fato que os empregadores não pagaram as verbas rescisórias e o trabalhador foi obrigado a entrar na Justiça para receber o básico. Não tem nada a ver com o empresário sério e que paga tudo certinho que Barroso desenha em sua palestra . Bem ao contrário do que afirma ser “o que acontece muito frequentemente, todo mundo sabe disso”, quem tem conhecimento de causa e não fica só escutando empresário sabe que a frase mais ouvida por trabalhadores brasileiros no momento da dispensa é o famoso “vá procurar seus direitos”. O que gera a suposta indústria de ações trabalhistas é a verdadeira indústria de descumprimento da lei pelos empregadores. O que ocorre bastante no Brasil é o puro roubo de salários, conforme expressão muito utilizada nos Estados Unidos em relação à sonegação de remuneração dos trabalhadores (“wage theft”). É isso que traduz a maior parte das ações no Brasil, conforme os números do próprio CNJ.

Assim, parece que o objetivo é evitar o ajuizamento de ações em relação a direitos como “pedidos de equiparação” e “horas extras que não ganhou”. Ou seja, que se proíba ajuizar ação para receber direitos sonegados ao longo da relação de trabalho. Isso explica as palmas entusiásticas da classe empresarial.

Aqui tem um ponto importante: o Ministro também afirmou que o volume excessivo de ações pode dificultar o investimento, gerar insegurança jurídica e desestimular a formalização de vínculos empregatícios. Mais uma vez o argumento não faz sentido, porque não é a formalização que gera as ações, mas a sonegação de direitos. A única coisa que a falta de formalização faz é aumentar o número de pedidos que deverão ser julgados procedentes pela Justiça, pois não impede o ajuizamento de ação em face de empresas, a menos que o STF negue o direito dos não formais de ajuizar as ações trabalhistas.

Assim, parece não ser nada adequada a solução dada pelo ministro para o problema que apresenta: para evitar que advogados “mauzinhos” levem as empresas a responderem na Justiça pelo pagamento de verbas trabalhistas não pagas, incentiva-se, pasme-se!, o ajuizamento de ações de homologação judicial de rescisões trabalhistas, desta vez com advogados “bonzinhos” de trabalhadores (encontrados em locais diferentes daqueles em que circulam os “mauzinhos”? Encontrados na empresa ou pela empresa?). Ora, não foi explicado como o advogado contratado pelo trabalhador a, em um e de mágica, de mauzinho para bonzinho. Fica também a dúvida se todo trabalhador agora, para receber suas verbas rescisórias, deve ter que contratar um advogado. Quem irá custeá-lo?

Outro ponto em sua palestra demonstra que Barroso realmente tem um fetiche pela negociação entre empregado e empregador. Ele falou que, na ação de homologação, o juiz verificará o cumprimento de direitos fundamentais, mas não tem que se intrometer na questão patrimonial, pois não cabe interferir na negociação entre trabalhador e patrão. Ele parece realmente acreditar que um trabalhador, ao ser mandado embora, necessitado de receber o que tem minimamente direito, incluindo o saldo de salário do último mês, dinheiro que o manterá vivo no período de desemprego, está possibilitado de negociar livremente com o patrão. Qualquer um que tenha conhecimento do que realmente ocorre nas relações de trabalho e como é a vida de pessoas trabalhadoras, sabe que a necessidade poderá fazer com que o trabalhador seja obrigado a “negociar,” o que outros, com mais pé no chão e noção de realidade, chamariam de renunciar a direitos e a valores.

Percebe-se, no entanto, que não há nenhum plano ou projeto do ministro quanto à indústria do descumprimento generalizado de direitos trabalhistas, o que poderia, isso sim, quem diria?, evitar ações. Nem mesmo se verifica uma preocupação real com o número de ações da Justiça do Trabalho, pois, no final das contas, Barroso e o CNJ estão incentivando a judicialização. Como ele mesmo disse na sua palestra, a resolução “não esvazia a Justiça do Trabalho, seria uma resistência política complexa, mas muda a jurisdição de contenciosa para voluntária.” Fora o ato falho que cometeu ao dizer, no não-dito, que não é esvaziada somente por conta da “resistência política complexa”, fica clara a tentativa de blindagem das empresas, ao mudar a natureza da Justiça do Trabalho. Se não podemos acabar com ela, mudemos sua natureza!

O que se percebe é que tudo não a de mais uma tentativa de impedir o o do trabalhador ao Judiciário e transformar a Justiça do Trabalho em mero órgão carimbador de rescisões. Essa estratégia foi por várias vezes requentada nas últimas décadas (inclusive há outra tentativa do mesmo estilo correndo atualmente, em outro front, a partir de articulação que estaria sendo feita pelo Ministro Gilmar Mendes. Como das outras vezes, trata-se de mais uma tentativa de blindagem da indústria das ilegalidades trabalhistas. Franz Kafka sabia tudo e previu no seu conto Diante da Lei o que Barroso está propondo. Vale a pena ler o conto e perceber como Barroso está fazendo o papel de guardião da porta da lei, que tem como função impedir o o dos trabalhadores ao direito do trabalho.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP. 

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3 Comentários

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  1. A conduta abusada do STF nos últimos 2 anos (revogação a marretadas do art. 7, da CF/88, esvaziamento do conteúdo civilizatório da CLT, supressão da competência da Justiça do Trabalho) em defesa dos lucros como de costume das plataformas de internet que obtém lucros crescentes explorando trabalhadores precarizados, confirma minha tese. O conflito que culminou no 08 de janeiro de 2025 não foi entre esquerda e direita, mas entre duas facções da direita. Uma delas representa o trabalho escravo tradicional, imposto com chicotes e armas de fogo no sertão. A outra é representante do trabalho escravo algoritmizado praticado nas cidades por sucursais de empresas norte-americanas no Brasil. Não foi a democracia que venceu a ditadura, foi uma modalidade de trabalho escravo que derrotou a outra. Mas isso não vai melhorar em nada a situação da população, porque os trabalhos de merda mal remunerados tendem a proliferar reduzindo a capacidade do INSS de arrecadar contribuições e comprometendo todo o sistema de aposentadoria a longo prazo. No final, somente os juízes, procuradores e outras carreiras públicas poderão dizer que ficaram realmente seguras. Isso não é democracia, mas um novo tipo de regime feudal empoderado pelas tecnologias da informação e garantido a marretadas pelos juízes.

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