Carta aberta a Hélio de la Peña: piada é ato político, e o humor não é neutro, por Nico Acosta

Piadas tendenciosas, disse Freud, são aquelas que atacam, humilham, ridicularizam. Elas têm sempre um alvo e visam liberar conteúdo reprimido

Basquiat

Carta aberta a Hélio de la Peña: piada é ato político, e o humor não é neutro

por Nico Acosta

Senhor Hélio de la Peña,

É extremamente perigoso validar, ainda que indiretamente, discursos de ódio, racismo e preconceito — como o senhor faz em comentário recente ao criticar a condenação judicial do humorista Léo Lins. A analogia que o senhor propõe — sugerindo que, enquanto fraudadores do INSS não forem presos, ninguém deveria ser punido por racismo — é logicamente inconsistente e moralmente duvidosa. Desde quando um crime justifica outro?

Mas o que mais chama atenção não é a contradição lógica, e sim aquilo que parece escapar ao seu comentário: o viés político do humorista em questão.

O humor — especialmente quando se torna público, amplificado e reiterado — não é neutro. Como mostrou Sigmund Freud (um judeu germânico que sentiu na pele o preconceito do discurso de ódio que levaria ao nazismo) em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905), as piadas podem ser meros jogos de palavras (as chamadas não-tendenciosas), mas também podem carregar impulsos inconscientes de natureza hostil, sexual ou ideológica (piadas tendenciosas).

As piadas tendenciosas, segundo Freud, são aquelas que atacam, humilham, ridicularizam. Elas têm sempre um alvo — um grupo social, uma minoria, uma autoridade — e visam liberar um conteúdo reprimido, seja ele agressivo ou obsceno. Piadas racistas, lgbtfóbicas, misóginas ou capacitistas não são meramente engraçadas: são formas disfarçadas de violência simbólica, que permitem ao sujeito gozar com o sofrimento ou a inferiorização do outro, sem enfrentar as consequências morais disso. Trata-se de um prazer perverso, estruturalmente ideológico.

Esse é o caso das piadas de Léo Lins — e de tantos outros humoristas alinhados à extrema direita. Eles não fazem apenas rir: eles produzem laços afetivos e políticos por meio do desprezo ao outro. Como bem afirmou o filósofo Slavoj Žižek, a piada racista não é apenas um conteúdo ideológico, mas um modo de gozo coletivo:

“O racismo […] reside não apenas na crença de que o Outro é sujo ou perigoso, mas também no gozo de fazer piadas sobre isso.”
— Žižek, The Fragile Absolute

É esse gozo reacionário que está na base do humor de Léo Lins: “Por que eu não posso ser racista?”, “Por que não posso zombar de nordestinos?”, “Por que não posso discriminar homossexuais?” Essas não são perguntas inocentes — são provocações estratégicas para testar os limites do issível, sob a desculpa da “liberdade de expressão”.

Não se engane: há um projeto político por trás disso. A piada “politicamente incorreta” se tornou uma das principais armas simbólicas da extrema direita contemporânea, usada para naturalizar o racismo, a misoginia, o capacitismo e a LGBTfobia — sempre disfarçados de “humor”. Trata-se de um mecanismo conhecido como “apito de cachorro fascista”: o discurso é ambiguamente ofensivo, ativando afetos reacionários entre os que compartilham do mesmo gozo político.

Nesse sentido, não surpreende que sua defesa da impunidade para o discurso racista coincida com a retórica bolsonarista: “não se pode prender golpistas enquanto houver traficantes soltos”, ou ainda, “não se deve condenar o racismo antes de prender corruptos”. Essa lógica é perversa: serve apenas para relativizar o inaceitável e suspender a justiça com base em desculpas cínicas.

Hélio, sua trajetória no humor brasileiro é marcada por contribuições importantes. Mas justamente por isso é ainda mais grave quando seu discurso resvala na defesa daquilo que deveria combater. Humor tem história, tem contexto, tem alvo. E tem consequências.

Liberdade de expressão não é liberdade para o ódio.

Cordialmente, mas com firmeza,

Nico Acosta

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