Diante da dor dos outros, sempre e mais uma vez, por Eliseu Raphael Venturi

Dizer algo — qualquer coisa — diante do que ocorre hoje na Palestina, parece uma espécie de cumplicidade e de imoralidade.

Sliman Mansour. Do rio ao mar . 2021.

Diante da dor dos outros, sempre e mais uma vez

por Eliseu Raphael Venturi

“Algumas feridas no coração talvez jamais cicatrizem. Mas não podemos permanecer imóveis, contemplando nossa dor indefinidamente. É preciso levantar, seguir adiante, não por vingança pessoal, mas em nome de uma justiça que alcance mais longe.” – Haruki Murakami

Há momentos em que escrever parece uma traição. Dizer algo — qualquer coisa — diante do que ocorre hoje na Palestina, parece uma espécie de cumplicidade e de imoralidade.

Como se a tentativa de compreender, nomear, organizar em linguagem, fosse já uma forma de amortecer o grito, de converter o sangue em gramática. E, no entanto, o silêncio também é pacto. Então escrevo — não por saber, mas porque não posso não escrever.

O genocídio em curso não precisa mais se esconder. Não há mais o álibi da dúvida, da ambiguidade ou do segredo. Está diante de todos, em transmissões ao vivo, nas redes que intercalam a explosão de uma escola com a nova coleção de um influenciador. E essa justaposição de horrores e frivolidades é o signo de nossa falência moral: não o massacre em si, mas a indiferença que o torna possível.

A barbárie nunca deixou de ser banal, é um fato. Não como retorno, mas como continuação. Walter Benjamin já nos alertava: todo documento de civilização é também documento de barbárie. O que se vê mais e mais uma e outra vez é o fracasso da razão humanista, da linguagem dos direitos, da promessa civilizatória do Ocidente. É a falência completa do Direito Internacional — uma arquitetura esvaziada, incapaz de conter o poder bruto, seletivo, colonial. E ao mesmo tempo não é, tampouco deve, ser um reconvite aos extremismos e aos conhecidos backlashes em crescimento vertiginoso nas afirmações dos novos normais mundo afora.

O que fazer? A pergunta desesperada, feita sob o ruído dos mísseis e o silêncio titubeante e cacofônico de muitas potências, talvez esteja errada. Talvez devêssemos perguntar: como ainda não fizemos nada? Como amos a normalização das mortes, dos corpos infantis soterrados, das mães carregando pedaços de filhos entre escombros? Como seguimos com nossos dias, com nossas planilhas, cafés e scrolls infinitos?

Susan Sontag, em Diante da Dor dos Outros, alertava que ver imagens do sofrimento pode nos comover, mas também nos dessensibilizar. A repetição do horror vira hábito. A exposição contínua anestesia. A imagem da criança ensanguentada no colo do pai perde o impacto diante da próxima manchete, do próximo vídeo de receitas ou da opinião cínica sobre o “conflito”. Mas não é um conflito. É um extermínio.

É também uma guerra de linguagem. “Conflito” é o nome que a diplomacia dá ao massacre quando não quer intervir. “Direito de defesa” é o véu narrativo do invasor. “Terrorismo” é a acusação lançada a quem resiste com pedras à máquina de guerra apoiada pelas maiores potências mundiais. A linguagem jurídica, mais uma vez, serve menos para proteger a vida do que para legitimar sua eliminação.

O Direito dos Direitos Humanos, criado no rastro do Holocausto, falha de modo escandaloso quando confrontado com a repetição de práticas genocidas. Falha não apenas por omissão, mas por seleção. Ele opera seletivamente, hierarquiza o sofrimento, concede dignidade conforme a geopolítica. Os mortos de Gaza não pesam nas balanças que medem o que é ou não intolerável ao Ocidente.

A falência não é só institucional. É ética. Assistimos ao genocídio como quem vê uma série — com episódios, reviravoltas, opiniões e cansaço. E isso diz mais sobre nós do que sobre os algozes. A máquina colonial, bélica, racializada que perpetua esse horror é sustentada por nossa ividade. A banalidade do mal, descrita por Hannah Arendt, ganhou nova roupagem: não é mais o burocrata obediente, mas o espectador indiferente.

Ser espectador, hoje, é uma posição política. Assistir é escolher — escolher não interromper. A pergunta “o que fazer?” não pode mais ser respondida com indignação performática ou gestos simbólicos.

Diante do genocídio, os compromissos se revelam. Universidades silenciam. Governos omitem. Artistas hesitam. A linguagem, enfraquecida, cede à pressão dos eufemismos. Mas talvez reste algo além da linguagem: o gesto. A recusa. A denúncia. O boicote. A escuta radical daqueles que ainda falam sob ruínas. E a coragem de apontar os cúmplices — mesmo quando eles vestem togas, ternos ou uniformes.

Edward Said já havia nos alertado para o modo como o imaginário colonial ocidental constrói o “outro” árabe como bárbaro, irracional, ameaçador — uma construção simbólica que legitima as intervenções imperiais como se fossem atos de civilização. O discurso orientalista, segundo Said, não é apenas uma narrativa cultural, mas um sistema de poder que molda políticas, legitima ocupações e autoriza violências. Na Palestina, esse discurso se atualiza de forma brutal: o povo palestino é frequentemente reduzido à figura do inimigo, do terrorista, do corpo descartável. A recusa do Ocidente em nomear o que se a como genocídio não é uma falha conceitual, mas uma operação ideológica — o genocídio só existe quando os mortos pertencem ao “mundo civilizado”.

Said também nos convida a pensar a Palestina como uma questão — não apenas um território em disputa, mas um espelho de todas as contradições do mundo moderno: colonialismo, racismo, apartheid, e o esvaziamento da linguagem dos direitos. A Palestina desnuda a hipocrisia dos valores universais proclamados pelo Ocidente, pois é o lugar onde esses valores colapsam diante de interesses estratégicos e alianças militares.

Diante disso, resistir é também reescrever: romper com as narrativas impostas, devolver voz ao silenciado, reconstruir a memória a partir das ruínas. Como Said insistia, a luta palestina é, antes de tudo, uma luta pela dignidade — e reconhecer essa dignidade é o mínimo ético que nos resta.

Sontag dizia que olhar a dor dos outros pode nos fazer melhores. Hoje, temo que só nos faça cínicos. A diferença está no que fazemos depois de olhar. Se desviamos os olhos, ou se nos colocamos ao lado dos que já não têm olhos para ver.

Não escrevo por eles. Escrevo para lembrar a mim mesmo que ainda é possível não ser cúmplice. E que a pergunta certa talvez seja: como sustentar a dignidade de olhar o horror e não o naturalizar?

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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