Fim do mundo, por Dora Nassif

Fala-se com temor sobre o fim do mundo, mas não se pergunta como os povos indígenas sobreviveram — e resistem — ao fim do mundo deles.

Reprodução Instagram Ailton Krenak

Fim do mundo

por Dora Nassif

O colapso do mundo é novidade para nós; para outros, é memória

Ultimamente, as discussões sobre a proteção do meio ambiente têm ganhado algum espaço, ainda que de forma mais lenta do que o necessário. O Brasil volta a se posicionar mais fortemente com a agenda ambiental internacional, buscando trazer maior visibilidade para os potenciais danos irreversíveis ao planeta. Ao mesmo tempo, cresce o medo de um colapso global, de um futuro distópico, de um “fim do mundo”.

E se – como já destacado por Ailton Krenak, líder indígena e escritor brasileiro – o fim do mundo já aconteceu? Usar o nome de Krenak aqui é nomear e fazer ser ouvido quem tem sido sistemática e violentamente invisibilizado pela história. Mais ainda, é contar o fim do mundo sob a perspectiva de quem já o viveu, não sob a perspectiva de quem o teme como um futuro (talvez não tão) distante.

Pense-se no Brasil. Na escola, a pergunta era sempre a mesma: “Quem descobriu o Brasil?” E a resposta vinha em coro: “Pedro Álvares Cabral”. Uma resposta equivocada para uma pergunta igualmente equivocada. Aos poucos, cresce o reconhecimento de que o que aconteceu aqui foi uma invasão — e de que os povos que já habitavam este território tiveram suas terras tomadas, suas famílias destruídas, sua gente assassinada.

Fala-se com temor sobre o fim do mundo, mas quase nunca se pergunta como os povos indígenas sobreviveram — e ainda resistem — ao fim do mundo deles.

Tome-se como exemplo o povo Krenak, localizado no estado de Minas Gerais. Para eles, o fim do mundo não é uma possibilidade futura, mas uma experiência histórica contínua. Esse fim começou com a colonização, ou pela chamada “Guerra Justa” e foi legitimado pela Carta Régia de 1808, que autorizava a matança dos Borun, nomeados pelos colonizadores de forma pejorativa como “Botocudos”. Seguiu com as políticas indigenistas do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Com a construção de ferrovias que cortaram seus territórios. Com o funcionamento do Reformatório Krenak, transformado em espaço de confinamento e violência. E, mais recentemente, com o rompimento da barragem da Samarco, que matou o rio Watu, conhecido por muitos como Rio Doce.

Os povos indígenas vivem seu próprio fim do mundo desde o século XV.

A pedagoga e indigenista Geralda Chaves Soares resume isso de forma direta: “Ser BORUN é uma saga longa, sofrida e da qual, entre outras lições, aprendemos que é possível resistir às várias formas de dominação e exploração impostas às minorias étnicas nesse país pluriétnico que não se aceita como tal.”

Do mesmo Krenak, o livro Ideias para adiar o fim do mundo reúne reflexões diretas e íveis sobre colapso, tempo e modos de existência. O que está ali parte da experiência do povo Krenak — uma entre centenas de comunidades indígenas que ainda existem no Brasil e que também resistem, pensam e propõem outras formas de estar no mundo.

Nesse livro, Krenak faz uma crítica direta ao modelo civilizatório ocidental, que separa a humanidade da natureza. A partir de uma visão indígena e ancestral, ele propõe outra forma de estar no mundo: uma forma que reconhece a terra como organismo vivo, como parte da própria existência humana. Essa ligação está presente até no nome do povo Krenak:

“Kre” significa cabeça.

“Nak” significa terra.

Cabeça da terra; não como metáfora, mas como forma de vida que não se compreende fora da relação com o solo, com o rio, com a montanha.

Para o povo Krenak, a conexão com a Serra Takukrak é expressão concreta desse modo de existir. Pela serra, observam sinais do tempo, leem o movimento do dia que começa. Não é um saber que se aprende em livros, nem algo que interesse ao modelo de ensino ocidental. Essa experiência, que poderia apontar outras formas de viver, vai sendo apagada, marginalizada em favor de uma narrativa globalizante.

O Rio Doce, chamado por eles de Watu, também carrega essa dimensão: não é um recurso natural, é um ser que está em coma, depois de ter sido coberto por rejeitos tóxicos de uma barragem

Krenak escreve: “Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos de Terra.”

Há anos, os únicos grupos que mantêm esse tipo de vínculo com a terra são justamente os que a sociedade escolheu esquecer: indígenas, quilombolas, caiçaras, aborígenes.

E mesmo agora, com todo o discurso ambiental ganhando espaço, esses povos continuam sendo excluídos das decisões. Continuam sendo ignorados nas soluções propostas. Mesmo sendo os que sempre trataram a terra com amor e gentileza, mesmo sendo aqueles que mais têm a nos ensinar.

Volta-se, então, à pergunta inicial: será mesmo que o fim do mundo nunca aconteceu?

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SOARES, Geralda Chaves. Os Borun do Watu – Os Índios do Rio Doce. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1992.

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