INCT - InEAC Instituto de Estudos Comparados em istração de Conflitos
Há mais de 15 anos, o Instituto de Estudos Comparados em istração de Conflitos (INCT-InEAC-UFF) vem trabalhando com pesquisas sobre a diversidade das formas institucionais de istração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal. Os trabalhos são produzidos através de uma rede nacional e internacional de programas de Pós-Graduação, grupos de pesquisa e de pesquisadores espalhados por sete estados do Brasil e nove países. Esta coluna se relaciona com os esforços dessa rede em refletir sobre temas da pauta política e social brasileira, visando a contribuir com o debate público e difundir ciência para fora dos muros da universidade.

Terrenos movediços da razão: como a “razão cismática” reduz e opõe visões de mundo?, por Fabio Reis Mota

Mais que mudanças, nos encontramos em aceleradas mutações ainda pouco perceptíveis e evidentes que precisam ser pesquisadas e compreendidas.

Procissão da Deusa da Razão

Terrenos movediços da razão: como a “razão cismática” reduz e opõe visões de mundo?

por Fabio Reis Mota

Parece existir uma sensação compartilhada por muitos ao redor do mundo: a solidez do terreno que pisávamos no solo da história parece se dissolver diante das formas argilosas emprestadas às superfícies do presente e do futuro da humanidade. “Tudo que é sólido desmancha no ar” … Enunciado de Marx reatualizado no século XXI.

A euforia em torno da globalização e seus supostos efeitos na dissolução das fronteiras nacionais, dos nacionalismos e da abertura das fronteiras se encontram em xeque. Muitos exemplos poderiam ser mencionados para apontar percursos contrários a estes. O Brexit me parece o caso paradigmático. A grande potência das expansões marítimas em séculos ados, a que germinou os primeiros arbustos da “globalização”, com o gesto de saída da União Europeia envia o recado para o mundo que não aceita mais brincar no “parquinho da globalização”. Farinha pouca, meu pirão primeiro, como diz o ditado popular.

A emergência e difusão de uma “consciência ecológica” ao longo da segunda metade do século XX foi vista como um novo paradigma da relação humana com a natureza. Ela até foi, em parte… Todavia, a saída dos Estados Unidos, em 2017, do Acordo de Paris consagrou em ato o que George Bush (pai) havia proferido na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Eco 92, que “our way of life is not negotiable”. O país que ocupa o ranking do segundo maior poluidor do planeta deixou a mensagem: “reduzam os carbonos de vocês que nós continuaremos a emitir os nossos, mantendo nosso way of life”.

Diversas ações, medidas, atos, como a Conferência da Unesco em 1950, os julgamentos de Nuremberg de 1945/46 dos sanguinários e criminosos líderes nazistas do III Reich, a deflagração da ideia dos direitos humanos e direitos civis, entre outros, criou a sensação de um novo abrigo de proteção para os seres humanos contra os exterminadores de carne humana. O massacre francês contra os argelinos na Guerra ocorrida em seguida a estes eventos (1954-1962), perpetrada, vejam que ironia, pela Nação que representa para o Ocidente o berço dos droit de l’homme, foi um balde d’água fria.

Neste exato momento em que escrevo, centenas de crianças, mulheres, homens, estão sendo exterminadas desumanamente, de maneira virulenta, bárbara e cruel na Faixa de Gaza. Mais um ironia da história: genocídio produzido pelo Estado que se formou contra os bárbaros, inumanos, execráveis atos de extermínios dos judeus durante o  Holocausto promovido pelos nazistas na Alemanha de Hitler, são eles hoje os promotores de um dos genocídios mais cruéis da contemporaneidade.

Mas o que nos parece mais movediço, quando consideramos nossas pesquisas antropológicas realizadas no âmbito do INCT-InEAC/PPGA/NUFEP-UFF, são os conteúdos e formas da razão no seu enquadramento “iluminista”. As luzes da Lumière parecem estar diante de um blackout face às grandes mutações que se encontram em curso na esfera do pensamento, cognição e da prática humana. Mais do que mudanças, nos encontramos em aceleradas mutações ainda pouco perceptíveis e evidentes que precisam ser pesquisadas e compreendidas.

No final das contas, criamos uma espécie de consenso e, no caso das Ciências Sociais um apriorismo, acerca da dimensão intrínseca, imanente, de uma representação de que há um estado natural do ser humano de portar e fazer uso da razão. Acontece que a razão nos moldes como a conhecemos há alguns séculos é, por si mesma, um feito histórico recente se considerado a longa história humana. São 2,5 milhões de anos contra três séculos!

Acontece que nosso espírito, no sentido filosófico do termo, é limitado dimensionalmente porque nossa consciência é prisioneira de um espaço-tempo   de um presente encarnado, impedindo de ar  as informações necessárias para estabelecer um julgamento equilibrado por meio da “razão pura”. Nosso cérebro e nossa mente são produtos de propriedades bioquímicas, mas são, sobretudo, um envelopamento cognitivo-mental forjadas pelos resíduos culturais. Nós julgamos, qualificamos, definimos verdades sempre em circunscrição simbólicas que fazem parte dos nossos “territórios de compreensão” do mundo no qual ancoramos nossas “certezas”.

Nossa capacidade, do ponto de vista cerebral, de tratar as informações é necessariamente limitada, ela não é infinita. Logo, a complexidade de lidar com certos problemas e com suas complexidades excedem as potencialidades do uso dos “bons sensos”. De um certo ponto de vista, somos seres croyantes. E a crença na razão foi um dos grandes credos dos últimos séculos. Ironicamente, em nome dela, e de outros interesses, o Ocidente engendrou a criação de uma máquina mortífera que foi o Colonialismo que se voltou contra civilizações qualificadas como “primitivas”, “irracionais”, sob a justificativa de salvá-las de seus supostos “estados bestiais”. No lugar da salvação, o extermínio de povos inteiros! Uma “razão” que se nutriu de nebulosas formulações “científicas” que eram no fundo somente cismas ! 

O que é a razão cismática?

Só que essa mesma “razão iluminista” hoje se tensiona com uma outra forma da razão, a que denominamos em nossas pesquisas de “razão cismática”. Embora ela não seja uma novidade na história humana, pelo contrário pairou nos céus da história em muitas ocasiões, o trabalho de compreensão sobre seu formato atual é de grande relevância para buscar entender, ainda que uma pequena parcela, as mutações sociais em curso.

A “razão cismática” se caracteriza pela dimensão cíclica do raciocínio, se nutre do absolutismo da certeza, é formada e legitimada por comunidades que se fecham em seus entendimentos e valores compartilhados entre si. Ela é refratária a dúvida e  suas formas de produção de provas e verdades são informadas pelo trabalho de editorialização do mundo realizado individual e coletivamente por meio de considerações de “autoridades argumentativas” e pelos meios de comunicações, que hoje com os algorítimos, afunilam as informações conforme  nossas predileções. Ela fomenta a conformação de arquipélagos de ideias, princípios  e valores que não engendram uma conectividade comunicativa entre partes diferentes.

Portanto, a cisma se diferencia da desconfiança. Desconfiar é um ato que supõe um processo de avaliação realizado no percurso da interação, levando em consideração inúmeras provas, fatos, elementos para confirmar a desconfiança ou, pelo contrário, dissolvê-la diante do que se vê e da experiência. Relações sociais informadas pelo raciocínio da desconfiança supõem a existência de canais e pontes comunicativas entre seres humanos diferentes. Por meio dessas vias de o, é possível transitar entre a ação de confiar, desconfiar ao considerar a existência efetiva de um outro-interlocutor. Nesta ambiência há lugar para a negociação e convergência das ideias. E, sobretudo, há espaço para a dúvida.

A operação do raciocínio cismático vai por outro caminho. A interação e relação entre as pessoas não pressupõem levar em consideração fatos, provas e argumentos apresentados pelo “oponente”, pelo “outro-diferente”. Os fatos, provas e argumentos válidos são somente os que provêm das ilhas de entendimento e dos arquipélagos de ideias aos quais os cismados pertencem. O resultado disso é o ensimesmamento e a obstrução dos canais e vias comunicativas entre partes diferentes e antagônicas concernidas nas dinâmicas sociais. É um ambiente no qual o outro-diferente não é uma extensão de mim. Muito pelo contrário, o outro-diferente reforça, no mundo da razão cismática, o sentimento de pertencimento e vínculo a um universo de concepções de mundo que é “meu” e que se opõe radicalmente ao mundo do “outro”. É a encarnação do princípio: “narciso acha feio o que não é espelho”. Impermeabiliza-se as possibilidades de negociar e convergir sobre os “fatos” e “verdades” entre partes polarizadas. No lugar de posições divergentes, há a polarização e ruptura entre concepções e visões incomensuráveis de mundo. Por isso o diferente se torna uma ameaça. Vejamos alguns exemplos dos efeitos da razão cismática em diferentes esferas da atualidade. 

Como a razão cismática se materializa no cotidiano?       

No domínio do político, institucional ou ordinário, assistimos à profusão da polarização em diferentes estados e níveis em diversos cantos do planeta. A insularização do pensamento no universo da razão cismática tem sido terreno fértil para a propagação de uma onda planetária de movimentos de extrema direita, muitos deles que preconizam o extermínio de certos grupos ou a rejeição de determinados seres humanos em seus “territórios nacionais”. Os efeitos da razão cismática podem ser observados na vida política institucional e cotidiana mesmo em países com uma longa história democrática, como a França, os EUA e a Alemanha. Mas igualmente são percebidos na Itália, na Argentina, no Brasil, etc. De uma política baseada na oposição, assistimos, globalmente, a constituição da política fundada na radical polarização e ruptura. Rachaduras, inclusive, que incidem no domínio das relações domésticas, da casa, do ambiente familiar como verificamos no Brasil nas duas últimas eleições presidenciais, mas que se repercutem em outros países.

No domínio das relações íntimas ou de proximidade, a razão cismática pode ser percebida e sentida nas dinâmicas amorosas. O aparelhamento da razão cismática nestes domínios tem consequências quanto a incomensurabilidade comunicativa. Exemplos. Um simples gesto, que pode ser realizado com a intenção de portar um sinal de gentileza, como o de abrir uma porta, filtrado pelo raciocínio cismático pode ser avaliado e julgado como machismo. O simples fato de uma mulher se encontrar com seu smartphone teclando pode ser, pelo filtro da cisma, representado como uma ação de traição pelo namorado, marido, etc. que pode cismar que ela está a se comunicar com um amante. E isso, aliás, pode ter repercussões horrendas e execráveis como a violência contra a mulher, um fenômeno bárbaro que acomete o Brasil. A composição da cisma, com o machismo e patriarcalismo e seus efeitos nefastos ! O universo da razão cismática se assemelha à brincadeira do telefone sem fio: um fala ou faz A e o outro entende B. Os espaços de negociações e conversações se tornam reduzidos, produzindo uma série de curto circuito comunicacional e mal entendidos no universo do íntimo. 

Na gestão dos espaços públicos e conflitos, há alterações significativas. Tomemos o caso do homicídio do jovem francês, Nahel, assassinado por volta das nove da manhã à queima roupa por um policial durante uma fiscalização  de trânsito em Nanterre/Paris. É a composição explosiva do racismo e da islamofobia, já que se tratava de um jovem com traços e diacríticos magrebinos, com o raciocínio cismático. Mesmo em se tratando de uma polícia aparelhada e treinada pelos protocolos, portando ela o princípio da defesa dos cidadãos,  apesar da baixíssima taxa de letalidade policial na França, nas novas condições do pensamento forjado na esteira da razão cismática, a brutal atitude do policial ganha lugar. Mesmo no berço do iluminismo, como aliás, temos apontado em nossas pesquisas, a razão cismática tem se germinado e remodelado as ordens das coisas na França contemporânea.

A morte do jovem gerou uma série de protestos, mas igualmente foi possível, através do o aos canais como TikTok, observar inúmeras manifestações de apoio à ação criminosa do policial. Até na terra dos Droit de l’Homme há a observância dessas rachaduras e polarizações alimentadas pela razão cismática que se compõe aos racismos e a islamofobia pululante. A própria associação do islamismo com terrorismo, ideia fortemente difundida na Europa, EUA, etc, é produto de uma perspectiva cismática. Pura cisma, com efeitos devastadores !

A razão cismática tem terreno fértil no mundo dominado pela “smarthifonização” do mundo. A inteligência artificial é o protótipo tecnológico bem acabado da razão cismática. Já que ela, por meio dos algoritmos, afunila nosso o às informações, restringindo o fluxo de dados e a uma visão de mundo pré-moldada pelas nossas predileções. Afinal, o algoritmo seleciona aquilo que corresponde aos nossos gostos e “cliques”. Ela reforça nossas convicções, enquadrando as perspectivas a um universo relativamente homogêneo e circunscrita às visões particularizadas e fechadas de mundo. Ela dissolve o comum alargado, concedendo lugares a pequenas comunidades dos “comuns-semelhantes”. Nesse oceano de informações jamais visto na história da humanidade, tendemos, com o trabalho particularizado de editorialização do mundo, focalizarmos e captarmos as informações que fazem parte de nossas restritas “comunidades de entendimento”.  O paradoxo de podermos navegar em um gigante oceano de informações, mas que no fundo nos insulariza cognitiva e mentalmente no âmbito do raciocínio cismático encapsulando os juízos que são compartilhados entre os “meus/nossos”. Cada ilha de entendimento distante e separada !

Embora pareça um “diagnóstico” pessimista sobre o percurso do ado, do presente e do futuro, na verdade o propósito é incitar ao leitor e a leitora a compreender que a história humana não é linear, não são como as auto estradas norte-americanas com retas quase infinitas. Não! A história é feita de muitas curvas, sinuosidade, ziguezague. Nosso papel, e nossa contribuição no domínio das Ciências Sociais e Humanas, é de colaborar para compreender alguns aspectos que não são necessariamente evidentes nem para gente, nem para os não cientistas sociais. Por isso mesmo devotamos nosso tempo, energia, abdicamos de muitas coisas da vida para produzir conhecimentos que possam ter essa “utilidade”: explicitar as condições das formas da existência humana. Pois assim, talvez, seja possível produzir, coletivamente, alterações nos nutrientes dos terrenos da história. Para mudar algo, é preciso compreendê-lo. Afinal, como dizia o grande poeta Cazuza: o tempo não para !

Revisão: Mariana Pitasse

Fabio Reis Mota. Professor de Antropologia da UFF. Pesquisador do INCT-InEAC/UFF. Coordenador do NUFEP/UFF. Bolsista de Produtividade CNPQ 2

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