Um mundo em transição e um país em transe, por Luís Nassif

De um lado tem-se o governo Lula empenhado na reconstrução institucional e, do outro, uma elite e uma mídia completamente sem noção

Ricardo Stuckert

Há um mundo em transição, com o fim gradativo das diversas formas de articulação do poder da potência maior: os Estados Unidos. O Brasil entra no jogo com inúmeras possibilidades e enormes riscos, já que é uma Nação fraturada.

De um lado, tem-se o governo Lula, empenhado na reconstrução institucional do país, mas com as bolas de ferro do orçamento loteado e das políticas monetária e fiscal impedindo qualquer vôo maior. E sem um projeto claro do novo país a ser desenhado.

De outro, tem-se uma elite e uma mídia que perderam completamente a noção de país. Até os anos 90 era possível encontrar empresários com o objetivo de serem grandes em um país grande. A financeirização da economia e internacionalização do capital transformaram a acumulação financeira em objetivo maior. É um jogo no qual as empresas – especialmente as estratégicas, privatizadas – são tratadas como vacas leiteiras, com a única função de gerar mais e mais dividendos, à custa do sacrifício dos investimentos em inovação, segurança e crescimento. E deixando de lado qualquer preocupação em relação à sua função estratégica. Agora, são investidores do mundo.

Há um esforço individual do MDIC-BNDES, da Fazenda, do Planejamento, do MCTI em montar alguma forma de articulação do desenvolvimento.

Mas, por trás de tudo, há o fantasma das metas inflacionárias, uma excrescência que subordinou totalmente o país aos movimentos do dólar.

Celebra-se, no Banco Central, a política bem sucedida de domar os movimentos especulativos do dólar. Os resultados estão na desaceleração pontual da inflação, dos bens de consumo aos índices de preços no atacado e do consumidor, uma vitória de Pirro, que dará alguns meses a mais de oxigênio à política econômica, mas não resolve a questão central do desenvolvimento. 

O modelo de metas inflacionárias e o livre fluxo de capitais amarraram  totalmente a possibilidade de um projeto de desenvolvimento.

Deixa-se o câmbio livre, pressionam-se os preços e vende-se a ideia de que apenas elevação de juros segura a inflação.

A elevação de juros aumenta a relação dívida/PIB, com reações das agências de rating, obrigando a mais elevação de juros. É mais do que a maldição de Sísifo, porque cada rodada amplia o sufoco orçamentário e a transferência de renda para o investimento financeiro.

Ao contrário de outros tempos, o aumento dos lucros não leva ao aumento de investimentos. É mera acumulação de riquezas utilizada para arbitragem de taxas e de ativos. Toda a cobertura midiática insiste em não diferenciar o capital financeiro do capital produtivo. E toda a lógica cambial tem como foco exclusivamente o capital financeiro.

O resultado é trágico, porque essa máquina de gerar lucros estéreis tem como epicentro o financiamento da dívida pública. E as soluções de sempre são jogar com o terrorismo fiscal para investir contra Fundeb, Benefícios de Prestação Continuada e outros programas sociais, que tornam minimamente palatável um modelo de capitalismo predatório.

Qualquer tentativa de distribuir migalhas do orçamento para os mais vulneráveis – ou para políticas estruturantes, como educação, saúde – é taxada de “populismo eleitoral” por uma mídia parcial e terrivelmente ignorante.

Com esse jogo do dólar, em vez de investir na ampliação da produção, multinacionais trocam  investimento direto por empréstimos matriz-filial, para jogar exclusivamente com arbitragem de taxas de juros e câmbio. A volatilidade do câmbio impede qualquer aumento expressivo do investimento externo na produção, pela dificuldade em estimar a taxa de retorno – já que cada solavanco no câmbio impacta mais os resultados do que a rentabilidade do negócio, em reais. E o lucro das empresas nacionais, em vez de buscar o investimento, busca os ganhos de tesouraria.

Por outro lado, é um enorme desafio mudar o modelo.

A estratégia atual consistiria em istrar as limitações do modelo monetário-fiscal, enquanto se prepara o novo tempo, de transição para uma nova ordem mundial, para moedas alternativas ao dólar e para parcerias produtivas com novas potências. 

.O desafio consiste em responder às seguintes questões:

  • Como estabelecer limites ao livre fluxo de capitais?
  • Como desestimular a distribuição alucinada de dividendos, induzindo as empresas a aplicar os lucros na produção.
  • Como reduzir a influência deletéria da volatilidade do dólar nos preços e nas decisões de investimento.

Por outro lado, há pontos essenciais para se chegar aos novos tempos:

  • Quais serão as condições de parceria com a China, já que o aprofundamento das relações comerciais poderá levar à destruição do que resta de indústrias no país?
  • Como aproveitar o potencial de terras raras e de minérios, para beneficiamento interno e criação de linhas de industrialização internas e fugir da sina de ser mero exportador de commodities?
  • Quais as exigências para as multinacionais que irão transferir suas empresas para o país, aproveitando o potencial de energia verde? Quais as garantias de que haverá transferência de tecnologia, t-ventures com capital nacional, criação de redes de fornecedores nacionais, definição de conteúdo nacional?

Enfim, o país terá que se envolver em uma grande discussão, com os centros de inteligência do governo, da academia, das associações privadas e dos movimentos sociais, para responder ao grande desafio: este país ainda há de cumprir seu ideal, ou se conformará em ser apenas a reprodução digital de um grande cafezal?

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10 Comentários

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  1. A elite e a mídia desse país tem perfeita noção de seu papel e posição no mundo. E levam a cabo seus desígnios de forma clara, límpida, tanto no que diz respeito aos seus interesses, quanto no que diz respeito a como fazem chegar essas movimentações à opinião pública. São profissionais, certeiros, cirúrgicos, como é habitual dizer, hoje em dia. Quem não tem noção de absolutamente porra nenhuma são os políticos progressistas (sic), a esquerda, e todo aqueles que enxergam alguma coisa, nesse mundo, para além do oba-oba da mídia. Ou que tem a noção (ideia?) de que é possível transformar o capitalismo em algo ético, solidário, em um sistema que contemple a todos os seus elementos, todos os seus componentes. Não é possível fazer isso lá, nos países centrais, que dirá nas periferias. Jornal GGN, 08/06/25, por Reynaldo Aragon: “Numa época em que os centros imperiais exportavam máquinas e importavam excedente primário das colônias, Florestan alertava: a dependência não é uma fase transitória, mas uma estrutura funcional do capitalismo periférico. Uma engrenagem de subordinação persistente, disfarçada de modernização. A tecnologia, em sua época, já era um problema de classe e de projeto nacional. Hoje, ela é mais do que isso — é uma ontologia política global, escrita em linguagem de máquina.” Éramos subdesenvolvidos, depois nos tornamos ‘em desenvolvimento’, ultimamente somos emergentes. O que mudou? Nada, a não ser o fato de que éramos escravos fornecedores de matéria prima e mão de obra barata, e hoje somos fornecedores de juros altíssimos, taxas de câmbio generosíssimas, e pernoite para capitais estrangeiros. Ou seja, tudo que os países colonizadores e imperialistas não tinham, em termos de recursos naturais, eles vinham roubar aqui; hoje, tudo que eles não podem ter lá – juros altíssimos e moeda flutuando ao sabor do sobe-e-desce da ciranda financeira – eles vem colher aqui. E quem se beneficia disso é a nossa elite (agro, principalmente), que produz basicamente em real e vende em dólar, e o que fica por aqui, com oferta reduzida, tem os preços elevados no mercado interno, devidamente enaltecida e glorificada pela mídia. Sem noção? Totalmente conscientes de si e de seus propósitos, e nadando de braçada. E quando a situação degringolar, na próxima bolha, esgotadas as possibilidades do país sob um novo FHC, surgirá um candidato progressista (um novo Lula, ou um velho Lula novo, enfim, um progressista), que aquecerá a economia, vai gerar liquidez, se tiver a sorte de ser contemporâneo de um novo boom de commodities, e irá preparar a economia para uma nova rodada de ciranda financeira, e tudo vai ‘start over again’, e assim, ad infinitum. Mas, se não houver boom de commodities…bem, aí será um sinal claro de que não somos mais necessários – tudo terá sido esgotado, e o mundo dará mais um o (são cada vez mais gigantescos) em direção à virtualização de tudo. A elite estará no mesmo lugar, como sanguessuga da ciranda, a mídia idem, a população onde Deus quiser, se é que Ele ainda dá uma vista de olhos aqui, por essas paragens. Lula se transformou em uma ideia, conforme ele mesmo itiu, e no momento em que isso aconteceu, foi como se o Mujica tivesse morrido antecipadamente. O mundo das ideias comporta tudo, de lulas e mujicas a bezos e musks. Já o mundo real…bem, para mover-se nele é preciso ação, e não discursos e retórica. Lula, hoje sabemos, sempre foi uma ideia. Menos Hegel e mais Marx, por favor.

  2. A mídia não é sem noção. Ela faz parte desse saque ao país, estimulando esse jogo sujo da taxa de juros. A Elite brasileira não tem nenhum compromisso com o desenvolvimento do Brasil, nunca teve.
    Todos, bancos, mídia, ruralistas, todos vivendo da especulação financeira.
    Dia desses um gerente de banco me disse, que tem empresas Tem gente pegando dinheiro para investir em inovação e aplicando em juros . Só não ver que não quer.

  3. O Trump depende do Musk para manter os EUA na corrida espacial-militar e o Musk precisa do governo para possibilitar o fracasso espacial-milutar dos EUA. Quando se deram conta de suas mútuas dependências, botaram os rabinhos entre as pernas e fugiram um do outro em sentidos opostos.

  4. Antes que todas essas mudanças na ordem econômica mundial se aprofundasse foi esperado que o Brasil aproveitasse bem as possibilidades que começavam a acontecer, imaginaram que a volta dos investimentos públicos, o PAC 1 e 2 , a aplicação de conteúdo nacional na indústria automotiva e pela Petrobrás, entre outras coisas, levasse o Brasil a fortalecer sua indústria e a aplicar valor agregado à produção do País. Com todo o acumulado em consequência disso, alguns organismos internacionais vislumbraram vultoso crescimento do PIB. Mas faltou isso que foi citado, uma disposição das elites empresáriais se apresentarem ; ao ar do tempo apenas o interesse financeiro ganhou espaço. Ninguém vai oferecer nada de bandeja ao Brasil, é o País que precisa apresentar objetivos. Mas quais são esses objetivos do País.

  5. Infelizmente NADA disso vai sair do papel. Infelizmente!

    Aliás, o primarismo de pensamento é REGRA no atual governo, vide AÇÕES dos ministros da economia e casa civil.

    O Brasil está condenado a mediocridade, apesar de seus imensos potenciais. Infelizmente!

  6. “Como estabelecer limites ao livre fluxo de capitais?”

    James Tobin já apresentou uma solução há muito tempo. Saudades das manifestações da ATTAC e dos FSMs. Mas sem pressão popular ampla nunca sairá do papel.

    “Como desestimular a distribuição alucinada de dividendos, induzindo as empresas a aplicar os lucros na produção.”

    Fixação de tamanho máximo das empresas privadas, via golden share do Estado a partir de um certo tamanho, e taxação de lucros, dividendos e J.

    “Como reduzir a influência deletéria da volatilidade do dólar nos preços e nas decisões de investimento.”

    Instituição de meta cambial, como contrapeso à meta de inflação e às metas fiscais. O câmbio flutuante é uma aberração do tal “tripé”, que na verdade é uma mesinha perneta. O Banco Central deverá buscar a concordância prática entre todas as metas (a “função otimização” do “algoritmo” do BC), focando na melhor combinação e não em qualquer uma delas em especial.

    Falta, contudo, a tarefa síntese: como tomar as rédeas da comunicação social e tirar a população em geral do estado de imbecilidade induzida pela grande mídia, Big Techs e mercado financeiro. Essa é a pergunta do milhão.

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