A bondade não é antagonista suficiente contra a maldade, por Luiz Lima Faria

A bondade não é antagonista suficiente contra a maldade

por Luiz Henrique Lima Faria

Nos últimos tempos, tenho mantido em minha prática docente um cuidado mais atento para não reduzir o mundo a dicotomias simplistas. Trata-se de um exercício desafiador, visto que fomos ensinados a enxergar tudo em pares opostos: luz e sombra, certo e errado, bem e mal. É compreensível, pois o pensamento dicotômico oferece uma ilusão de ordem em meio ao caos da experiência humana.

No entanto, a realidade raramente se curva a essas simplificações. A maldade, por exemplo, não encontra em sua contraparte mais celebrada, a bondade, um verdadeiro e completo antagonista. Isso porque a bondade, tal como a idealizamos, é muitas vezes dócil demais, iva demais, ingênua demais para confrontar, de forma eficaz, aquilo que a maldade representa.

Com essa certeza e em tempos aos quais a maldade se disfarça de liberdade de expressão, de obediência às regras ou, até mesmo, de respeito às crenças religiosas, resolvi me lançar ao exercício de buscar, para além da bondade pura, verdadeiros antagonistas da maldade. Nesse percurso reflexivo, encontrei três que me pareceram especialmente reais e contundentes: o compromisso com a verdade, a coragem diante do perigo e a renúncia aos privilégios.

O compromisso com a verdade não é comenda para exibição pública em ato de autopromoção. Ao contrário, é pacto com o incômodo. Exige confronto com o sórdido que fere sorrindo aqueles que não podem se defender e enfrenta, ainda, as versões enviesadas forjadas para sustentar a injustiça estrutural. Quase sempre, a maldade se comunica pelas entrelinhas, como um código cifrado, vestindo informações manipuladas e refugiando-se nas sombras de um poder maculado. O compromisso com a verdade não se acomoda, visto que seu propósito é desmontar o jogo viciado. Por isso, enfrenta tanta resistência. Porque expõe a crueldade dos poderosos e desaloja do abrigo da hipocrisia os que fingem neutralidade.

Sob esses entendimentos, lembrei de uma frase atribuída a George Orwell, que nunca consegui encontrar na distopia 1984: “em tempos de engano universal, dizer a verdade se torna um ato revolucionário”. Embora breve, esse pensamento carrega o peso de uma escolha moral. Quando a mentira se torna linguagem oficial e a repetição molda o real, o compromisso com a verdade nos leva a aceitar o risco do antagonismo frontal. Um risco que isola, mas também revela quem não se vende, quem não se curva, quem decide, com integridade, não compactuar.

Tratando agora de outro antagonista da maldade, a coragem diante do perigo, pode-se dizer que ela exige ação onde o medo aconselha a apatia. Coragem não é ausência de temor, mas recusa em ser governado por ele. É fácil indignar-se em voz baixa, entre pares confiáveis. Difícil é sustentar a convicção quando ela fere interesses, desagrada autoridades ou compromete vínculos de pertencimento. A maldade não avança apenas quando encontra cúmplices declarados, mas também quando se depara com opositores que se calam, que hesitam, que desviam o olhar em nome da prudência. A coragem moral é persistência. É o gesto de quem, mesmo diante do risco real de perda de poder, de prestígio, de segurança, escolhe não trair a própria consciência. Quando a maldade se estrutura como norma, ter coragem aparenta insensatez aos olhos dos acomodados. Ainda assim, é ela quem sustenta de pé a decência da alma.

Para melhor compreender a natureza dessa coragem diante do perigo, recorro a Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, que nos alertou para a banalidade do mal ao revelar como horrores podem ser perpetrados por sujeitos comuns que, ao renunciarem ao pensamento, transformam a obediência em instrumento da barbárie. O mal, para Arendt, não requer monstros, apenas pessoas dispostas a cumprir ordens sem refletir, a seguir regras sem questionar, a calar diante do inaceitável. É nesse vazio moral que a coragem se torna decisiva. Coragem para romper com a engrenagem do automatismo, para obstruir o fluxo cruel, para agir mesmo quando a ação implica risco. Onde falta coragem, a omissão se converte em combustível para a apatia cotidiana que sustenta e normaliza o mal.

Partindo, agora, para o entendimento sobre o antagonista da maldade caracterizado como a renúncia aos privilégios, é preciso reconhecer o quanto essa atitude exige ruptura radical com a injustiça. Renunciar aos privilégios implica recusar o conforto estruturado às custas da desigualdade, abrir mão de vantagens não fundadas no mérito que sustentam a exclusão de muitos. Não se trata de um gesto simbólico ou de uma concessão moral pontual, mas de um reposicionamento ético que afronta o pacto tácito das hierarquias vigentes. A maldade se alimenta da naturalização desses privilégios, da crença de que é possível ser justo mantendo intactas as estruturas viciadas. Romper com isso é abrir fissuras no muro da conveniência. Trata-se do antagonista mais difícil de ser conquistado, porque expõe não só os que oprimem, mas também os que se beneficiam em silêncio cínico.

Não é simples justificar a si mesmo a renúncia aos privilégios. Requer mais do que consciência, exige a desinstalação de certezas que alimentam vaidades. Zygmunt Bauman, em Vidas Desperdiçadas, observa com precisão que “a desigualdade não é um defeito da sociedade moderna, mas um de seus produtos mais bem acabados”. A maldade, nesse cenário, não se impõe apenas pela violência direta, mas se organiza na rotina da vantagem, disfarçada de mérito e legitimada por conveniência. Perpetua-se porque seus beneficiários raramente se reconhecem como parte do problema. Por isso, renunciar aos privilégios é atitude rara, mas indispensável. Não nasce da boa vontade, mas da coragem de desmontar as engrenagens que sustentam as injustiças cotidianas. Não se trata de compaixão, mas da recusa deliberada a permanecer como parte da injustiça.

Sob esses entendimentos, penso que o compromisso com a verdade, a coragem diante do perigo e a renúncia aos privilégios constituem três formas possíveis de antagonismo à maldade, não como abstração moral, mas como enfrentamento prático ao modo como ela se expressa e se reproduz nas estruturas da vida social. Nenhuma dessas atitudes é confortável, tampouco oferece pertencimento ou popularidade. Todas exigem algum grau de sacrifício. Entretanto, são elas que interrompem o ciclo do cinismo, que desmontam o pacto da indiferença, que resgatam a dignidade da ação ética em tempos de maldade normalizada. Se a bondade ainda quiser ter algum sentido neste mundo, precisa aprender a ser incômoda e insurgente. Só assim deixará de ser mero adorno biográfico ensimesmado para, enfim, tornar-se agente transformador da realidade.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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