Mentiras, soberba e a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã, por Carolina Maria Ruy

Mas a vitória certa que eles tinham em mente, logo se tornaria ideal inalcançável naquela floresta tropical.

Guerra do Vietnã – Reprodução

Mentiras, soberba e a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã

por Carolina Maria Ruy

Há 50 anos, em 30 de abril de 1975, a Guerra do Vietnã chegou ao fim. Os comunistas do norte derrotaram gloriosamente o exército dos EUA garantindo a unidade do país. Isso é o mais importante. Mas há muito mais a dizer sobre este episódio sangrento.

Se grandes eventos como a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), a Revolução Russa de 1917, a Crise de 29 e a Segunda Guerra (1939 – 1945) redefiniram a história na primeira metade do século XX, a Guerra do Vietnã, durante longos vinte anos foi a maior expressão da Guerra Fria, que atravessou quase toda segunda metade do século, redefinindo, mais uma vez, a ordem mundial.

Quando as forças armadas dos EUA aterrizaram no Vietnã, em 1964, com a orientação de fortalecer o Sul para combater o Norte do país, o exército de Ho Chi Minh já havia vencido a França imperialista, que lutou (e perdeu) para manter sua colônia na Indochina.

Comunista e apoiado pela União Soviética e pela China, o pequeno país, quente e chuvoso, despertou nos EUA o medo de que seus adversários ganhassem terreno daquele lado do mapa.  

Os americanos, então, entraram de cabeça em uma guerra que duraria uma década, custaria milhões de vidas (de ambos os lados) e um grande desgaste político para o país.

De salto alto

Eles haviam saído vitoriosos de duas guerras mundiais, exerciam grande influência sobre a Europa Ocidental com o plano de recuperação para os países devastados pelas guerras, implementaram um regime de controle e repressão na América Latina através de ditaduras, como o regime militar brasileiro, viviam o período que ficou conhecido como Era de Ouro do Capitalismo, com um sistema massivo de produção e consumo, e já contavam com um poderio econômico e militar ostensivo. Com esta bagagem, os EUA sobrevoaram oceanos e pisaram no Vietnã “de salto alto”.

Mas a vitória certa que eles tinham em mente, logo se tornaria ideal inalcançável naquela floresta tropical.

“Cheiro de napalm pela manhã”

A prepotência estadunidense é um ponto que merece atenção nesta história. Enquanto documentários, reportagens e depoimentos atestam como o clima de desumanização foi incentivado por altos comandantes, a ficção encena situações que dizem muito sobre o que acontecia ali.

Por exemplo, é do clássico Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (1979), uma das mais terríveis e reveladoras frases do cinema: “Eu adoro o cheiro de napalm pela manhã. Cheira a… vitória”, dita pelo tenente-coronel Bill Kilgore (Robert Duvall), após um ataque aéreo organizado para “liberar” uma praia dominada pelos vietcongues para que os militares dos EUA pudessem surfar. Com isso ele mostra a frieza e a indiferença dos americanos com as mortes e com toda a destruição.

Daniel Ellsberg

Outra prática que vinha do alto escalão e que marcou a história dos EUA no Vietnã, foram as notícias falsas que o governo transmitia ao seu povo.

É conhecido o episódio, de 1971, quando o ex analista militar, Daniel Ellsberg revelou documentos secretos que escondiam mentiras do governo sobre a guerra. Suas denúncias fortaleceram protestos que se alastravam desde 1968, quando os conflitos sangrentos começaram a ser transmitidos ao vivo e em cores nas televisões, que eram objetos de desejo na explosão do consumismo.

Ellsberg revelou que o governo, mesmo sabendo que não tinha condições de vencer aquela guerra, continuou bombardeando o Vietnã, o Laos e o Camboja e mandando os jovens americanos para morrer no oriente.

O governo americano soube que não ganharia a guerra logo pós a chamada “Ofensiva do Tet”, em janeiro de 1968. Dali em diante foi impossível sustentar a certeza da cúpula militar e política sobre a vitória americana.

Atrocidades em My Lai

Mas, ao invés de recuarem, eles implementaram uma prática de demonstração desmedida de violência. Algo que ficou marcado pelo massacre de My Lai, logo em março de 1968.

No cinquentenário do massacre (março de 2018), a jornalista Evelyn Theiss, em artigo para a Revista Time[1], disse que:

“Quando o fotógrafo Ron Haerbele desembarcou perto da aldeia de My Lai, no Vietnã, na manhã de 16 de março de 1968, junto com a unidade do Exército com a qual estava – Companhia Charlie, Primeiro Batalhão, Vigésimo Regimento da Infantaria, os moradores não ficaram abalados. Os americanos já haviam visitado a região antes, sem incidentes. Mas naquele dia, dentro de minutos, conforme um relatório oficial do exército informou, as tropas abriram fogo. Nas horas que se seguiram, as forças americanas arrasaram o vilarejo. Eles estupraram, torturaram e mataram centenas de idosos, mulheres e crianças. Mais de um ano depois, quando as chocantes fotografias de Haerbele daquelas atrocidades foram publicadas, elas desnudaram uma verdade aterradora: os ‘garotos’ americanos eram tão capazes de selvageria descontrolada como qualquer soldado, em qualquer lugar”.

Haerbele, o fotógrafo, teve um importante papel ao revelar ao mundo não só os horrores daquela Guerra, como também a mentalidade que era incentivada entre os soldados. A matéria da Revista Time registra memórias perturbadoras do fotógrafo que presenciou a matança do povo vietnamita: “Nos diziam: ‘A vida não tem significado para essas pessoas’: o inimigo não é como nós. Eles não são humanos”.

Ele foi um dos muitos jornalistas que registraram o conflito. Por isso, é vasto o material sobre as ações dos EUA no Vietnã — material que não deixa dúvidas sobre as mentiras e a brutalidade praticadas à época.

Três imagens emblemáticas

No artigo O Vietnã foi aqui[2], da Revista Fapesp, a jornalista Ruth Helena Bellinghini, afirmou que três imagens se tornaram emblemáticas:

“A foto do monge budista imolando-se em protesto em 1963; a do agente americano explodindo com um fuzil a cabeça de um vietcongue ajoelhado a seus pés e a inesquecível foto, de 1972, da menina nua correndo queimada por napalm”.

Isso tudo impulsionou os movimentos contra a guerra que aram a pressionar o governo americano.

Contagem e Osasco

Curioso ressaltar que este era um assunto tão presente nas manchetes que até no Brasil formou-se, na intelectualidade e no operariado, um sentimento de solidariedade aos combatentes de Ho Chi Minh.

Ainda segundo o artigo O Vietnã foi aqui:

“Em 1968, com a ocupação da embaixada norte-americana, na Ofensiva de Tet. O Vietnã ou a ser tão popular que nas greves em Contagem e Osasco o nome do país era palavra de ordem, as imagens da guerra apareciam até no Canal 100 nos cinemas, que só mostrava futebol”.

Vietnã buscava reunificação

O exército dos EUA usou sua tecnologia, aviões, bombas, armas químicas que deixaram sequelas, usou um grande contingente de soldados fortes e bem alimentados. Mesmo assim, o governo foi esmagado por protestos dentro de casa e pela determinação vietnamita.

Para o jornalista Amiad Horowitz, “Cada revés militar dos EUA não era apenas uma perda tática, mas também política, corroendo o apoio interno e deslegitimando a guerra no cenário internacional”.

Em artigo publicado no site People`s World, ele explica que a resistência do Vietnã está no fato de que eles não lutavam por dominação, mas por libertação.

“Sob a liderança de Ho Chi Minh e do Partido Comunista do Vietnã, buscavam a reunificação nacional, a independência e o fim da ocupação estrangeira. Sua luta estava enraizada em décadas de resistência anticolonial — contra os colonialistas ses, os fascistas japoneses e, agora, os imperialistas norte-americanos”, diz[3].

Além disso, o apoio financeiro e militar da União Soviética e da China, que se manteve durante todo a guerra, ajudou o Vietnã do Norte a vencê-la.

A retirada das tropas americanas começou em 1973, após os Acordos de Paz de Paris. Em 30 de abril de 1975, o Vietnã do Norte conquistou Saigon, unificando o país sob regime comunista e colocando um fim naquela guerra insana.

Guerra que matou mais de um milhão de vietnamitas e cerca de 58.000 norte-americanos, além dos graves danos ambientais causados pelo uso de armas químicas como o agente laranja e bombas de napalm.

Incompreensão, confusão e paranoia

Em “Era dos Extremos”[4], o historiador Eric Hobsbawn fala que o Vietnã desmoralizou e dividiu os EUA e revelou o isolamento da superpotência, já que “nenhum de seus aliados europeus mandou sequer contingentes nominais”.

Ele levanta que é quase impossível compreender o que levou os EUA a se envolveram numa guerra condenada, contra a qual seus aliados, os neutros e até a URSS tinham os alertado e sugere que o fato se explica pela “densa nuvem de incompreensão, confusão e paranoia dentro da qual os principais atores da Guerra Fria tateavam o caminho”. Para ilustrar, Hobsbawn lembra um fato pitoresco: o então primeiro-ministro da União Soviética, Nikita Khrushchov, teria dito ao Secretário de Estado dos Estados Unidos, Dean Rusk: “Se vocês quiserem, vão em frente e combatam nas selvas do Vietnã. Os ses lutaram lá durante sete anos e acabaram tendo que sair. Talvez os americanos possam aguentar um pouco mais, mas vão acabar tendo que sair também”[5].  

Segundo o historiador, o fato de os EUA terem se enfraquecido com a Guerra do Vietnã, não alterou a ordem bipolar ou “a natureza do confronto nos vários teatros regionais da Guerra Fria”.

O objetivo dos EUA no Vietnã, de mostrar superioridade diante do Bloco Comunista, falhou fragorosamente. Poucos anos mais tarde, entretanto, a própria Guerra Fria terminaria mal para os comunistas.

Repetição de erros

Hoje, depois de tantos anos, porém, a ideia sobre o triunfo absoluto dos EUA em 1991, é questionável. Além de enfraquecidos, divididos e humilhados pelo Vietnã, quando saíram do país, a Era de Ouro do pós Segunda-Guerra havia sido liquidada pela Crise do Petróleo de 1973. Crise da qual o capitalismo nunca se recuperou totalmente. Em 2008 uma nova crise abalou o neoliberalismo, desarranjando cadeias econômicas, impulsionando o crescimento global da extrema-direita e colocando em xeque os propalados “valores ocidentais”.

Os EUA repetiram no Afeganistão, entre 2001 e 2021, os erros do Vietnã, além de continuar promovendo e financiando guerras pelo mundo para manter sua imagem de superioridade econômica e militar e para disseminar o imperialismo político e cultural.  

Enquanto isso, a despeito do fim da Guerra Fria, o oriente comunista, do qual o Vietnã é parte, segue se fortalecendo.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical


[1] “The Photographer Who Showed the World What Really Happened at My Lai”, Evelyn Theiss para Time.com, 15 de março de 2018.

[2] “O Vietnã foi aqui, Imprensa brasileira usou guerras na Ásia para falar de conflitos internos”, Ruth Helena Bellinghini, Revista Fapesp, Edição 101, julho de 2004

[3] “50 years after reunification, Vietnam still stands as proof imperialism can be defeated”, By Amiad Horowitz, People´s World, 17 de abril de 2025.

[4] “Era dos Extremos, o breve século XX”, Hobsbawn, Eric, Companhia das Letras, 1994.

[5] A informação está em uma nota de rodapé na página 241 da 2ª edição de “A Era dos Extremos, o breve século XX” (Hobsbawn, 1994), publicada pela Companhia das Letras.

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2 Comentários

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  1. Mais uma vez, nenhuma menção ao Complexo Industrial-Militar e sua força e influência sobre a istração americana, denunciada pelo general Eisenhower em seu discurso de despedida da Casa Branca. Mostrar superioridade diante do Bloco Comunista? Ok. Preservar a imagem de superioridade econômica e militar? Ok, também. Mas, e proporcionar lucro à cadeia produtiva do Complexo, que depende de guerras, conflitos, de preferência longe do próprio território, nada? Nem uma simples consideração? Um dos maiores e mais atuantes lobbys de Washington? Digo e repito: antes, armas para as guerras; hoje, guerras para as armas.

  2. eu faria só um “aparo” ao artigo: ao invés de “Eles haviam saído vitoriosos de duas guerras mundiais, exerciam grande influência sobre a Europa Ocidental com o plano de recuperação para os países devastados pelas guerras”, colocaria “acreditando na própria fantasia de que haviam saído vitoriosos de duas guerras mundiais e que eram os responsáveis por essas vitórias,…”. Porque, desde quando os EUA foram os vitoriosos na 2ª Guerra Mundial?

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