Ferrovia São Paulo-Rio: Trinta anos a serviço dos minérios, por José Manoel Gonçalves

Desde a privatização em 1996, a ferrovia SP-RJ privilegiou o transporte de minério de ferro, em detrimento de cargas gerais e contêineres.

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Trinta anos a serviço dos minérios

Ferrovia São Paulo-Rio precisa romper sua dependência histórica

por José Manoel Ferreira Gonçalves

A ferrovia que conecta São Paulo ao Rio de Janeiro, operada pela concessionária MRS Logística, compõe a Malha Sudeste da rede ferroviária federal, concedida em 1996 por 30 anos. Com extensão total ligando os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, essa malha atende aos principais portos da região (Santos, Itaguaí, Sudeste, Guaíba e Rio de Janeiro). Trata-se de um corredor estratégico que atravessa as três maiores regiões metropolitanas do país, com mais de 60 milhões de habitantes, movimentando cerca de 30% de toda a carga ferroviária do Brasil. Além das grandes, a ferrovia também a por várias cidades menores, mas ainda assim importantes no contexto ferroviário. No entanto, ao longo dos últimos 30 anos, seu potencial para transporte de cargas gerais ficou subaproveitado.

Desde a privatização em 1996, a ferrovia SP-RJ privilegiou o transporte de minério de ferro, em detrimento de cargas gerais e contêineres. Dados recentes indicam que, após 26 anos de concessão, cerca de 90% do volume transportado pela MRS se concentrou em minério de ferro e produtos siderúrgicos, enquanto apenas 10% eram cargas gerais. Esse predomínio se deve à importância do Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais e à participação acionária de grupos mineradores na MRS, fato que direcionou as operações para a exportação de commodities minerais. Somente nos últimos anos a MRS ou a enfatizar a necessidade de diversificar a carga transportada. A meta declarada para o novo ciclo de concessão é atingir cerca de 50% de participação de carga geral, sobretudo em contêineres.

Renovação da Concessão e Compromissos

Em julho de 2022, foi assinada a renovação antecipada da concessão por mais 30 anos. Esse ato veio atrelado a obrigações de investimento que visam ampliar a capacidade e diversificar as cargas. Entre os principais compromissos destacam-se a criação de quatro novos polos intermodais ao longo da malha — dois em São Paulo (Mooca e Lapa), um no Rio de Janeiro (Queimados) e um em Minas Gerais (Igarapé). Espera-se que, com essa infraestrutura, a MRS consiga dobrar o volume de carga geral transportada e multiplicar por sete o transporte de contêineres.

O compromisso é investir cerca de R$ 11 bilhões até 2056, que incluem obras de expansão de capacidade, modernização da via permanente e aquisição de locomotivas e vagões. Parte dos recursos deve ser destinada a projetos de aumento da intermodalidade e redução do custo logístico, incluindo a construção de terminais e a adequação para trens de carga geral mais extensos. É forçoso que fiscalizemos esse compromisso. É o mínimo, ante o ideal de uma repactuação.

Os terminais de contêineres e de carga geral serão centrais na estratégia de diversificação. Cada um tem prazos diferentes de entrega, contados a partir de 2022. Em São Paulo, a MRS iniciou obras preparatórias para o Terminal Intermodal Mooca, vinculado à segregação de vias da TM, que inclui reconstrução de estação e realocação de trilhos. Em Queimados (RJ) e Igarapé (MG), os trabalhos ainda se encontram em fase de projeto e licenciamento ambiental. A expectativa é de que essas estruturas permitam uma movimentação média de 3,18 milhões de toneladas anuais de carga geral.

Atualmente, contudo, nenhum desses terminais se encontra em operação, embora existam avanços concretos em São Paulo (Mooca). Os prazos contratuais preveem a entrega do Terminal Intermodal de Queimados em até seis anos e de Igarapé, em até dez.

Excesso de Transporte Rodoviário

Cada composição ferroviária de 100 vagões retira potencialmente centenas de caminhões das rodovias, melhorando a segurança e reduzindo gastos com acidentes e manutenção. Em termos econômicos, a opção pelos caminhões encarece fretes, agrava a precariedade da infraestrutura e faz o Brasil gastar cerca de 12% do PIB em custos logísticos, muito acima de países desenvolvidos.

Além disso, o transporte por caminhões eleva as emissões de CO₂, tornando o Brasil um dos líderes mundiais em poluição gerada pelo setor de carga. Estudos mostram que o modal ferroviário emite cerca de 62% menos CO₂ que o rodoviário para transportar o mesmo volume, o que reforça a necessidade de investir em ferrovias como forma de reduzir impactos ambientais e custos logísticos.

Países de dimensão continental, como Estados Unidos, Rússia e China, utilizam mais intensamente as ferrovias para transporte de cargas. Nos Estados Unidos, cerca de 35% de toda a carga do país trafega sobre trilhos, enquanto no Brasil o índice ainda gira em torno de 15% a 20%, mas que cai para menos de 5% se excluirmos o transporte de minérios. No Canadá, esse percentual chega a 46%, enquanto na Rússia alcança impressionantes 81%. Esse contraste comprova o potencial desperdiçado no Brasil e a urgência de políticas públicas mais firmes para promover a intermodalidade.

Responsabilidades Governamentais

Apesar de a MRS possuir a obrigação formal de cumprir metas de diversificação, o governo, a ANTT e o Ministério dos Transportes também precisam agir ativamente para fiscalizar a execução dos investimentos. O governo não deve amolecer a fiscalização. Historicamente, faltou pressão e houve omissão no cumprimento das metas de transporte de cargas gerais. Políticas como o direito de agem, que permitem concorrência e maior aproveitamento da malha, são pouco praticadas ou mal fiscalizadas.

A renovação da concessão com a MRS, em 2022, sinaliza uma guinada na postura governamental, estabelecendo critérios de desempenho e a previsão de penalidades. Caso a MRS não atinja os objetivos pactuados, o governo pode adotar sanções, bloqueios de benefício ou mesmo recorrer a medidas mais drásticas, como a cassação da concessão e relicitação. A pressão social e de governos locais também é fundamental para que os prazos contratuais sejam respeitados e os terminais efetivamente implantados.

Depois de três décadas de concessão, a ferrovia São Paulo-Rio de Janeiro ainda se dedica predominantemente ao minério de ferro, mesmo com as promessas de diversificação. A renovação do contrato e a obrigação de construir terminais intermodais indicam alguma chance de reverter a tendência. O governo atual, que historicamente tem incentivado a expansão ferroviária, deve ser mais atuante na exigência dos acordos firmados, corrigindo o descaso de gestões anteriores.

José Manoel Ferreira Gonçalves – Presidente da ONG Frente Nacional Pela Volta das Ferrovias (FerroFrente), entidade que há mais de 10 anos defende a ampliação da malha ferroviária para o transporte de cargas e os trens de ageiros no Brasil. Pós Doutorado em Transportes e Meio Ambiente (Universidade de Lisboa), doutorado em Engenharia de Produção e Mestrado em Engenharia Mecânica, entre outros títulos. É autor de várias obras sobre o setor ferroviário, como Histórias das Ferrovias do Brasil: Ferrovias Paulistas (2018), Despoluindo Sobre Trilhos: Transformação Modal no Transporte de Cargas (2013) e Madeira-Mamoré: História das Ferrovias do Brasil (2017).

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2 Comentários

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  1. Excelente e necessário artigo, professor José Manoel! A análise sobre a destinação da malha ferroviária entre SP e RJ para atender exclusivamente os interesses da mineração levanta reflexões urgentes sobre o modelo logístico que temos adotado no país.

    Gostaria de aproveitar a oportunidade para sugerir que o professor comente também sobre a situação da Malha Oeste, que representa um eixo estratégico para a integração nacional e até para uma futura conexão com o Pacífico. Considerando sua expertise e o trabalho incansável da Ferrofrente, seria enriquecedor entender os desafios e as possibilidades de reativação desse trecho — não apenas para o transporte de cargas, mas também para os ageiros e o desenvolvimento regional.

    Parabéns pelo texto e que ele siga ecoando em quem realmente pode promover a mudança!

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