Estamos prestes a ser condenados a mais 30 anos de serviço precário e contas caríssimas na distribuição de energia

Silenciosamente, o Ministério de Minas e Energia e a Aneel buscam renovar todas as concessões de fornecedoras de energia elétrica

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Estamos prestes a ser condenados a mais 30 anos de serviço precário e contas caríssimas na distribuição de energia

Por Rodrigo Mariano/Senge RJ

Sem alarde ou cobertura da mídia hegemônica, uma decisão que vai impactar a vida dos brasileiros e brasileiras até 2031 está sendo articulada nos bastidores da gestão do sistema elétrico nacional. Após 30 anos de fornecimento irregular, longos apagões, prejuízos incalculáveis para a população e tarifas exorbitantes, as empresas responsáveis pelos serviços caóticos e superfaturados podem ter suas concessões renovadas por mais três décadas.

A negociata não para aí e alcança o absurdo: uma vez renovadas as concessões, serão perdoadas as dívidas relativas às multas pela péssima prestação dos serviços. Além de mais 30 anos de exploração, as empresas economizarão milhões em multas não pagas aplicadas pela Aneel. Estará oficializada a inutilidade da agência reguladora, que só multava quando muito pressionada pela opinião pública.

O já reduzido poder de intervenção da sociedade civil no processo está, desta vez, quase nulo. São 40 dias para que um tema complexo, fundamental para o desenvolvimento nacional e para o bolso do brasileiro, seja debatido e apresentadas propostas em audiências públicas. “Infelizmente, o processo de renovação das concessões atropelou todo o rito, todo o segmento. As articulações vêm acontecendo de forma inacreditável”, conta Eduardo Machado, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Energia Elétrica de Niterói.

Machado foi o entrevistado do programa Soberania em Debate, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), no último dia 15/05. Senge RJ e STIEEN integram o grupo de trabalhadores que, em um trabalho hercúleo, vêm correndo contra o tempo para, por meio de uma intersindical filiada à CUT e à Confederação Nacional dos Urbanitários, tentar levar algum bom-senso — e respeito à população — a um processo que parece, cada vez mais, um jogo de cartas marcadas. Confira aqui.

A história se repete como farsa

Nos anos 1990, auge do neoliberalismo, o entendimento dos entreguistas no poder era de que as concessões iriam garantir maior qualidade, tarifas mais baratas e a universalização do fornecimento. O Estado fez seu papel: cortou os investimentos e sucateou o serviço de propósito. Com os problemas se multiplicando, a opinião pública foi levada a acreditar que realmente melhoraria.

Depois de três décadas, qualquer um sabe o que realmente aconteceu. Não é preciso ser especialista para entender que apagões de 72 horas na maior metrópole do país são sinal de serviço precarizado. Contas caríssimas, mesmo em bandeira verde, também ilustram o problema que, já na época, os sindicatos alertavam: a energia é um direito, não um produto como outro qualquer, que pode ser vendido e negociado livremente. O motivo é óbvio: para garantir os lucros, as empresas não pensariam em melhorar a vida dos consumidores.

“O discurso daquela época era totalmente equivocado e oportunista. Atendeu apenas ao capital, aos rentistas. Para a população, para o cliente, infelizmente o que as empresas entregam é o caos total”, conta Eduardo.

Diferentemente do início da década de 1990, quando havia um falso motivo como desculpa para a entrega do serviço à iniciativa privada, hoje faltam argumentos para renovar as concessões das 19 empresas que marcaram sua atuação no período anterior pela precariedade.

Apesar dos fatos, é difícil intervir. Enquanto as empresas descumpriam os requisitos mínimos de qualidade impostos pelo Poder Público para sua atuação, a Agência Nacional de Energia Elétrica, criada em 1996 para regular o setor, colaborou com a precarização. Criada para fiscalizar e multar as empresas em nome dos interesses da população, a Aneel também falhou repetidas vezes na missão.

Sem diálogo

Quando o processo de renovação das 19 concessões foi anunciado, os sindicatos já tinham pronto um arcabouço técnico documentado. A partir dele, construíram propostas para aproveitar o fim dos contratos e pressionar por serviços mais baratos e de qualidade. Mas, para resultarem em ações concretas, essas propostas precisam ser recebidas e acolhidas — o que não vem acontecendo.

“As pessoas que detêm o poder, principalmente na Aneel, não são sensíveis a absolutamente nada que a população a. Em momento algum chamaram a sociedade para conversar. Nós marcamos entrevistas e audiências com a agência reguladora e com o Ministério de Minas e Energia, mas elas eram postergadas em cima da hora, depois de gastos para as viagens até Brasília já terem sido realizados. Todas as dificuldades que podiam colocar no nosso caminho, colocaram”, relata Machado.

A intersindical tentou levar aos círculos decisórios em Brasília duas propostas para aproveitar a janela de oportunidade aberta pelo fim dos contratos, visando à melhoria dos serviços e redução das tarifas. A primeira era a federalização da gestão do setor. Descartada imediatamente, a proposta deu lugar a outra: reestatizar o serviço, devolvendo-o aos governos estaduais, como era antes de 1990. Empresas estatais não buscam o lucro, estão sujeitas à intervenção direta da sociedade civil e podem ser usadas como ferramenta de desenvolvimento pelos estados. Mas essa proposta também não vingou.

Precarização galopante

Sem horizonte claro para barrar as renovações e o perdão das multas milionárias por quebras contratuais, os trabalhadores buscaram caminhos para melhorar o cenário. “Uma das nossas primeiras demandas era a manutenção do contrato de concessão do final da década de 1990. Ele era mais rigoroso no que diz respeito a deveres, direitos e obrigações”, aponta Machado.

Consideradas uma “erva daninha” que se alastra pelo sistema, a terceirização e quarteirização da mão de obra eram outro ponto endereçado pela intersindical. Como exemplo, Eduardo cita o caso do Rio de Janeiro, que foi de 8 500 funcionários próprios para 900, apesar do crescimento da população atendida. Para o sistema não derreter de vez, são contratados 8 500 profissionais terceirizados que, sem treinamento adequado, são responsáveis pelo funcionamento do setor.

“Como exigir qualidade e eficiência de uma pessoa que não está capacitada para o trabalho, em condições inadequadas? O treinamento poderia resolver isso, mas os contratos terceirizados duram apenas cinco anos e a rotatividade é enorme, tanto pelos contratos que vencem rapidamente quanto pela má remuneração, que faz os trabalhadores buscarem oportunidades em outras áreas”, explica o líder sindical.

Outros pontos destacados pelos sindicatos são o efeito dos sucessivos planos de dispensa voluntária por aposentadoria especial, que estão destruindo a memória técnica das empresas; um plano de investimentos para a transição energética; e atenção ao conceito de trabalho decente da Organização Internacional do Trabalho. A maioria dessas propostas segue recebendo negativas de Brasília.

A entrevista do presidente do STIEEL, que denuncia um esquema — legal, porém imoral — que busca, mais uma vez, desconsiderar os interesses da população e entregar um setor fundamental para o país a um pequeno grupo de nove empresas — que o transformaram, nas últimas décadas, em uma máquina de multiplicar lucros para poucos —, é também um apelo à sociedade civil para que o tema chegue ao grande público. Eduardo ainda tem esperanças.

“Eu sou otimista. Não só por mim, mas porque trabalhamos com um grupo heterogêneo de pessoas altamente capacitadas — advogados, economistas, engenheiros — que, juntos na intersindical, estão tentando minimizar os danos dessa renovação, eliminando aquilo que não atende à população e incluindo seus interesses”, finaliza.

O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT, Canal do Conde, e é transmitido pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.

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1 Comentário

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  1. Depois não sabem por que a classe trabalhador adere ao discurso fascista e desiste da esquerda. Essa esquerda gourmet que dá esmola para o pobre, mas não mexe no estrutural e faz o serviço sujo da elite patrimonialista com cara de democrática.

    O fundo do poço sempre é mais embaixo.

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