Finde/GEEP - Democracia e Economia
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Crédito consignado para o setor privado e o endividamento das famílias, por Paula Sarno e Carmem Feijo

A nova regulamentação não estabelece limites às taxas de juros cobradas. A aposta é na concorrência entre instituições financeiras

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Crédito consignado para o setor privado e o endividamento das famílias

por Paula Sarno e Carmem Feijo

Crédito é uma operação financeira que permite ao devedor ar recursos no presente, comprometendo-se a devolver o valor principal acrescido de juros em um momento futuro. Em teoria, o bem-estar proporcionado às famílias por meio do crédito está relacionado à possibilidade de financiar a aquisição de bens de maior valor — como imóveis, veículos e eletrodomésticos —, lidar com emergências ou suavizar o consumo ao longo do tempo.

Nessas situações, espera-se que a ampliação da oferta de crédito funcione como um estímulo à atividade econômica, uma vez que a antecipação de recursos possibilita um nível de consumo superior ao que seria viável apenas com a renda corrente.

Contudo, para que essas operações sejam sustentáveis, é fundamental que as dívidas contraídas estejam em linha com a capacidade de pagamento futura das famílias, determinada principalmente pela renda disponível. Quando os desembolsos se tornam persistentemente superiores às entradas de recursos, a chamada “restrição de sobrevivência”, apontada por Hyman Minsky, deixa de ser respeitada. Isso configura uma situação de alta fragilidade financeira, ameaçando a sustentabilidade do orçamento familiar e elevando os níveis de inadimplência.

Ao analisar os indicadores financeiros, observa-se que, no início do atual governo, em 2023, o endividamento das famílias brasileiras já vinha crescendo, acompanhado por um preocupante aumento da fragilidade financeira. Esse quadro se evidencia pelo avanço do comprometimento da renda com o serviço da dívida (juros e amortizações), pela elevação da inadimplência e pela maior participação de modalidades de crédito mais caras e com prazos mais curtos — tudo isso em um contexto de taxas de juros crescentes entre 2021 e 2023 e de deterioração da dinâmica econômica.

O indicador do Banco Central que mede o comprometimento da renda com dívidas financeiras subiu quase de forma contínua de 22% no fim de 2020 para 27,6% em junho de 2023, o maior patamar da série histórica. Quando desagregamos esse dado por faixa de renda, a situação se revela ainda mais crítica: nas famílias com renda de até cinco salários mínimos, o comprometimento ultraa 30%; nas de até dois salários, chega a 35%. É importante lembrar que esse indicador considera apenas dívidas junto ao sistema financeiro formal, deixando de fora as contraídas no comércio ou com pessoas físicas — o que indica que a realidade pode ser ainda mais grave.

Esses números revelam que, para muitas famílias, o crédito tem servido não para ampliar possibilidades de consumo, mas como substituto de uma renda insuficiente para cobrir os gastos cotidianos. Nesse cenário, o pagamento das parcelas do crédito obtido a rapidamente a consumir parte significativa do orçamento, comprometendo ainda mais a capacidade de pagamento e levando a um ciclo de endividamento persistente — uma verdadeira armadilha da dívida.

Romper esse ciclo exige a recuperação da renda familiar, combinada com a renegociação das dívidas existentes, de modo a melhorar de fato as condições de custo e prazo das operações. Isso permitiria reconstruir a capacidade de pagamento e abrir caminho para a superação do superendividamento. Em tais circunstâncias, o crédito, além de seu papel tradicional, assume uma nova função: tornar-se um instrumento de rolagem de dívidas anteriores, perpetuando o desequilíbrio financeiro das famílias.

A partir do segundo semestre de 2023, observou-se uma leve reversão na tendência de agravamento da situação financeira das famílias. O indicador de comprometimento da renda com dívidas registrou queda pela primeira vez em três anos, ando de 27,6% em julho para 25,9% em dezembro. Houve também redução na inadimplência, tanto nas modalidades de crédito com maiores índices de atraso quanto entre as faixas de renda mais baixas (conforme apontado na Retrospectiva 2023).

Esses movimentos parecem ter sido favorecidos por um desempenho econômico melhor do que o previsto, com taxas de crescimento mais robustas, melhora nos indicadores de emprego e renda, e pela adoção de políticas públicas voltadas à recomposição da renda. Entre essas medidas, destacam-se os novos adicionais ao Bolsa Família, viabilizados pela PEC da Transição, o aumento do salário mínimo, a recomposição salarial do funcionalismo público e o maior controle da inflação.

Em 2024, o crédito às pessoas físicas apresentou expansão em relação ao PIB. Apesar disso, os indicadores de fragilidade financeira — endividamento, comprometimento da renda e inadimplência — se estabilizaram em níveis historicamente elevados e, ao final do ano, voltaram a dar sinais de crescimento. A recuperação da renda, embora importante, não foi suficiente para reduzir de forma expressiva o nível de endividamento. Por outro lado, o recuo na participação do crédito rotativo e o crescimento das modalidades voltadas ao financiamento de bens duráveis foram aspectos positivos do ano.

Entretanto, o peso das dívidas acumuladas e a retomada da elevação das taxas de juros a partir de setembro de 2024 — sobre uma base já bastante elevada — continuaram a limitar a melhora das condições financeiras das famílias (ver Retrospectiva 2024). Nesse contexto, entendemos que os primeiros sinais de reversão observados em 2023 e alguns avanços em 2024 apontam uma direção clara: é pouco provável que se consiga enfrentar a fragilidade financeira das famílias sem uma recuperação mais robusta e duradoura da renda e do emprego, aliada a uma redução significativa e sustentada das taxas de juros.

Diante desse cenário, vale analisar a nova proposta de crédito consignado para trabalhadores do setor privado. A possibilidade de que empregados regidos pela CLT autorizem o uso de verbas rescisórias (40%) como garantia já constava na Lei nº 10.820/2003, após modificações em 2015. Com a Lei nº 13.313/2016, ou a ser permitida também a utilização de 100% da multa rescisória do FGTS (10%) como garantia para operações de crédito consignado, afastando-se, nesses casos, a impenhorabilidade desses recursos.

A Medida Provisória nº 1.292, de 2025, não altera esse ponto, mas traz inovações relevantes. Além de ampliar o o ao crédito consignado para empregados rurais, domésticos e microempreendedores individuais (MEIs), a principal mudança reside na forma de operacionalização dessas operações.

Até então, o crédito consignado no setor privado exigia convênios específicos entre empresas e instituições financeiras. Os trabalhadores só podiam contratar esse tipo de crédito com o banco conveniado com seu empregador, que compartilhava os dados funcionais.

Com a nova MP, essa lógica é profundamente transformada. O modelo proposto prevê que a formalização, contratação e gestão das operações de crédito consignado em a ser realizadas por meio de plataformas digitais geridas por agentes públicos e íveis eletronicamente. Os trabalhadores poderão, por meio da Carteira de Trabalho Digital, solicitar propostas e autorizar operações diretamente com instituições financeiras habilitadas pelo Governo Federal.

Nesse novo arranjo, os empregadores são obrigados a fornecer as informações necessárias para viabilizar a operação e a realizar os procedimentos de desconto em folha e ree, independentemente da existência de convênio prévio com a instituição financeira escolhida pelo empregado.

O sistema eSocial — plataforma unificada de envio eletrônico de informações trabalhistas, previdenciárias e fiscais — será utilizado para viabilizar esse novo modelo. Por meio dele, os bancos poderão ar dados dos trabalhadores com carteira assinada, ampliando a concorrência entre instituições e potencialmente reduzindo os custos do crédito consignado.

A Carta de Exposição de Motivos da Medida Provisória destaca que a proposta busca modernizar o marco regulatório do crédito consignado, alinhando-se ao processo de transformação digital. Justifica sua urgência e relevância com base na necessidade de aprimorar o o a essa modalidade de financiamento, garantindo maior eficiência, segurança e redução de entraves burocráticos.

Diferentemente do que ocorre com os consignados voltados a servidores públicos, aposentados e pensionistas, a nova regulamentação não estabelece limites às taxas de juros cobradas. A aposta é na concorrência entre instituições financeiras como instrumento de moderação dos custos.

Nos primeiros meses de vigência, as operações com base na nova regra deverão ser utilizadas exclusivamente para a quitação antecipada de parcelas de empréstimos ativos, tanto os não consignados quanto aqueles já descontados em folha. Nesses casos, o novo crédito deverá apresentar taxa de juros inferior à da operação original.

De modo geral, renegociações de dívida costumam ocorrer voluntariamente em contextos de queda sustentada das taxas de juros, nos quais os devedores buscam substituir obrigações antigas por outras em condições mais favoráveis. Isso é comum, por exemplo, no mercado de debêntures, em que empresas emitem novos títulos para quitar dívidas anteriores em momentos de alívio monetário. Contudo, esse não é o cenário atual: as taxas de juros seguem em patamar elevado e a política monetária caminha no sentido de um aperto adicional.

No caso do novo consignado para o setor privado, a expectativa é que o modelo digital e padronizado gere alguma vantagem de custo frente às taxas aplicadas ao crédito não consignado ou ao consignado no formato anterior.

Segundo Luiz Carlos Trabuco, presidente do Conselho de istração do Bradesco, em entrevista à Folha de S.Paulo em 16 de março de 2025, o principal efeito da nova regra será a melhora do perfil das dívidas de milhões de brasileiros, a partir da migração de dívidas antigas — com juros elevados — para novas em condições mais favoráveis.

O estoque de crédito pessoal não consignado, modalidade sem garantia, somava R$ 322,6 bilhões em dezembro de 2024. Quando somado ao consignado utilizado para composição de dívidas, o total ultraava R$ 400 bilhões. Esse montante é muito superior ao saldo de R$ 39,7 bilhões referente ao consignado no setor privado. Ou seja, há um mercado significativo a ser impactado por eventuais migrações.

Para o sistema financeiro, essa migração representa uma redução de risco, à medida que aumenta a participação do crédito com garantia na carteira destinada às pessoas físicas — hoje mais relevante que a destinada às empresas. Desde 2021, os saldos de crédito garantido vinham perdendo participação, devido à desaceleração dos consignados para servidores públicos e aposentados, bem como à queda dos financiamentos de bens, geralmente atrelados ao ciclo econômico.

No debate público, tem-se defendido que a substituição de crédito sem garantia por crédito com garantia implicaria naturalmente em taxas de juros menores para as famílias. No entanto, essa afirmação, embora tecnicamente correta, pouco informa sobre a efetividade da nova política. Como mostram os manuais de finanças, o menor risco para a instituição credora deve ser compensado com menores juros para o tomador. A questão central, então, é se os juros efetivamente cobrados refletem de forma justa a magnitude da garantia oferecida pelo trabalhador — que não é desprezível: 100% da multa rescisória e 10% do saldo do FGTS, ambos originalmente destinados à proteção em caso de demissão.

Até o momento, não é possível afirmar que os trabalhadores serão devidamente compensados por essa concessão. Primeiro, porque não há teto para as taxas de juros aplicadas na nova modalidade.

No caso da substituição de dívidas, a exigência de que os juros sejam “inferiores aos da operação original” é vaga e insuficiente para aliviar o orçamento dos endividados, no contexto de uma política monetária que segue em trajetória restritiva, ou seja, um ambiente pouco propício à substituição vantajosa de dívidas.

Por fim, o histórico do setor bancário mostra uma tendência à cobrança de juros elevados mesmo em operações de baixo risco, como ocorre nas demais modalidades de crédito consignado. Isso fragiliza a expectativa de que a concorrência, por si só, leve à redução das taxas no novo modelo.

Para além dessas incertezas quanto à substituição de dívidas, a nova regulamentação facilita a concessão de novos empréstimos em níveis inéditos, o que também pode trazer repercussões preocupantes. Ao permitir que o comprometimento da renda chegue até 40% com consignações, há risco de redução severa da margem disponível para a sobrevivência cotidiana, especialmente para famílias mais vulneráveis e em contextos de prazos mais longos. Além disso, esse comprometimento pode empurrar essas famílias a recorrer novamente a créditos mais caros, reacendendo o ciclo da inadimplência no médio e longo prazo — movimento já observado em outras modalidades de consignado (ver estudos do BCB).

Dessa forma, considerando os sinais observados em 2023 e 2024, entendemos que a estratégia mais segura para reduzir a fragilidade financeira das famílias a por aprofundar a recuperação da renda e do emprego, ao lado da reversão da política monetária restritiva. Diante do atual nível de endividamento, é improvável que o crédito, por si só, consiga atuar como indutor consistente da atividade econômica sem essas condições estruturais.

Paula Sarno, pesquisadora FINDE/UFF, pós doutoranda na UFF

Carmem Feijo, coordenadora do FINDE/UFF, professora UFF

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

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