Banco Central Antidesenvolvimento, por Gustavo Livio

Do ponto de vista econômico, o neoliberalismo simplesmente não pode prosperar sem amordaçar quem detém o controle sobre a chave do cofre.

Rafa Neddermeyer – Agência Brasil

Banco Central Antidesenvolvimento

por Gustavo Livio

Para a surpresa apenas dos ingênuos, o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, defendeu publicamente na semana ada a aprovação da PEC 65\2023. Trata-se nada mais nada menos do que uma proposta que pretende constitucionalizar o que se convencionou chamar de “privatização do Banco Central”. Em verdade, a PEC pretende transformar o BACEN em uma empresa pública com autonomia orçamentária. O termo “privatização” não é técnico, mas ainda assim é indicativo de um afastamento cada vez maior entre o governo eleito e o Banco Central.

Os problemas dessa medida são muitos. Destaco aqui a consumação do divórcio entre o Poder Executivo e o BACEN, o que aprofunda a cisão entre as políticas fiscal e monetária. É como se o Estado se separasse cada vez mais do seu banco oficial. Esse novo arranjo institucional permite a formação de fissuras que vão na contramão de visões desenvolvimentistas que exigem redução dos juros e expansionismo monetário. Além disso, os ganhos obtidos com senhoriagem (fonte de receita obtida com a emissão de moeda) deixarão de ser reados ao Tesouro Nacional. Apenas a título de informação, entre 2018 e 2023, o lucro com senhoriagem do Banco Central foi de R$ 114 bilhões (1) e suas receitas excedem sistematicamente suas despesas de custeio. Esse valor, que hoje é reado ao Tesouro Nacional, deixaria de sê-lo.

O importante é que o afastamento crescente entre o Estado e seu banco, para colocar em termos leigos, ou entre política fiscal e política monetária, em termos técnicos, é a chave para impedir o ativismo estatal na condução de uma economia a serviço do desenvolvimento econômico. Esse divórcio, iniciado com a aprovação da “autonomia” do Banco Central, se consumaria quase definitivamente com a transformação do BC em empresa pública.

E aqui não podemos fechar os olhos para um problema histórico: a substituição do paradigma desenvolvimentista pelo paradigma da estabilidade. O que isso quer dizer? Significa uma mudança fundamental sobre as funções precípuas da política econômica do governo. Enquanto no pós-guerra tanto os governos de esquerda quanto os de direita se preocupavam essencialmente com o crescimento econômico, a partir dos anos 1980 o neoliberalismo destrói o impulso desenvolvimentista e instaura um pacto pela estabilidade que, a bem da verdade, aniquila as chances de crescimento econômico sustentado. Dito de outra forma: entre 1930-1980, governos de esquerda e de direita se preocupavam essencialmente com a industrialização do país e com o crescimento econômico. Entre 1950 e 1980, o Brasil cresceu a uma taxa média fenomenal de 7% a.a, a renda per capita cresceu 4.4% a.a em termos reais e nos empenhávamos na edificação de uma indústria nacional razoavelmente sofisticada (2). O neoliberalismo revogou essas tarefas e estabeleceu uma fixação obsessiva pelo controle inflacionário. O problema é que a tal estabilidade tem sufocado as chances de crescimento econômico diante dos marcos institucionais aprovados a partir da década de 1990 (o tripé macroeconômico). Hoje comemoramos um crescimento pífio de 3% que não levará o país a lugar algum. Para que essa missão estabilizadora tivesse êxito, o poderio fiscal e monetário do Estado, que decorrem de sua soberania, precisaria ser algemado, pois, como argumenta a ortodoxia hegemônica, o expansionismo fiscal causa supostas perturbações no sistema de preços. O resultado é que o crescimento econômico tem ficado refém de um marco institucional antidesenvolvimento.

O Banco Central é uma peça central nesse xadrez das lutas de classes. Do ponto de vista econômico, o neoliberalismo simplesmente não pode prosperar sem amordaçar quem detém o controle sobre a chave do cofre. Dentre outras funções, o Banco Central emite moeda, fixa a taxa básica de juros, é o depositário das reservas de divisas e fiscaliza as instituições financeiras. O Banco Central se converteu em guardião do tripé macroeconômico (superávit fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante), o grande sacramento do neoliberalismo a serviço da austeridade fiscal: as taxas de câmbio são afetadas pelas estratosféricas taxas de juros (que atraem investimentos externos curto-prazistas); o controle sobre a emissão de moeda determina o resultado primário; e, por fim, a função precípua do BC ou a ser alcançar as metas de inflação fixadas pelo Conselho Monetário Nacional.

É por isso que o Banco Central é a garota dos olhos do neoliberalismo. É por isso os grandes telejornais defendem tão enfaticamente sua “autonomia” enquanto demonizam a “politização” do banco. A democracia burguesa se tornou uma ameaça: quanto menor a interferência do governo democraticamente eleito, mais seguros estarão os interesses da burguesia financeira. Quanto mais “técnicas” forem as decisões, melhor! Assim, o Banco Central pode fixar as taxas de juros nos píncaros sem que sua cúpula seja substituída discricionariamente. André Esteves pode ser o consultor oficial do Banco Central, sempre, é claro, recomendando elevação da taxa de juros porque o mercado está com medo. Ao fim do processo, todos os presidentes do BC retornam para seu lugar de origem. Campos Neto se torna Chefe Global de políticas públicas do Nubank e Gabriel Galípolo possivelmente seguirá caminho semelhante. Como resultado, ganham as classes rentistas, perdem as classes trabalhadoras.

Precisamos voltar a colocar o crescimento econômico como meta fundamental e, para isso, é preciso derrubar o tripé macroeconômico e reabilitar a função do Banco Central como motor de uma política desenvolvimentista que devolva ao crescimento econômico o protagonismo que merece. É claro que devemos discutir que tipo de crescimento precisamos e como ele será produzido e redistribuído, mas fato é que sem crescimento não haverá desenvolvimento e sem ativismo fiscal não haverá nenhum dos dois. O Banco Central não pode se afastar do poder executivo eleito, que, por sua vez, não pode se afastar dos objetivos fundamentais previstos no artigo 3º, II e III da Constituição de 1988: o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais. O que está acontecendo é que as progressivas “autonomias” do Banco Central só servem para afastar o Estado do grande instrumento para concretizar sua missão constitucional enquanto a grande finança consolida seus tentáculos de poder sobre os cofres do Estado.

Se quisermos ousar fugir de nosso destino cármico, se quisermos sonhar com a superação do subdesenvolvimento e cumprir a missão constitucional é preciso retomar o poder político sobre o Banco Central. Um Estado incapaz de gerir a própria moeda é um Estado incapaz de promover desenvolvimento econômico e, assim, de cumprir sua missão histórica. Não é possível competir no capitalismo global sem enfrentar o problema da financeirização da economia e sem desenvolver mecanismos de planejamento estatal industrial forte e de longo prazo, para os quais o fator “preço da moeda” é essencial.

É preciso também superar a ideia de que a inflação é sempre um mal a ser combatido. Paremos para pensar: inflação é fenômeno aparente de um conflito distributivo mais profundo entre fornecedores e consumidores. Não é uma anomalia, é uma relação social estruturante do capitalismo. Em níveis razoáveis, revelam uma economia saudável. Países deflacionários costumam ter sérios problemas (quem irá investir em ramos da economia com preços sistematicamente decrescentes? Quem irá comprar hoje sabendo que o preço de amanhã será menor?). Além disso, a inflação é um fenômeno multicausal complexo, o que significa dizer que existem inflações de diversos tipos cujas respostas demandam uma farmacologia igualmente diversa. Não faz sentido controlar inflação de alimentos com elevação da taxa de juros. Para esse tipo de inflação, por exemplo, estoques reguladores funcionam muito melhor.  A monotonia da taxa de juros como resposta para todos os males é sintoma de uma sociedade sufocada pela financeirização.

O laboratório da história já deu 45 anos para o neoliberalismo provar seu valor e, para a surpresa de ninguém, estamos relativamente mais pobres e desiguais do que antes. Ao mesmo tempo, a fatia dos 1% alcançou ganhos históricos via taxas de juros, privatizações e desregulamentações do capital financeiro. A progressiva submissão do Banco Central à burguesia financeira tem sido crucial para sufocar os sonhos desenvolvimentistas cristalizados inclusive como normas constitucionais; mas também tem sido indispensável para manter os ganhos do capital financeiro obscenamente altos, as taxas de desemprego e informalidade elevadas e o povo na miséria.

A senhora da história, a luta de classes, se desenha sobre o papel do Estado, seus orçamentos e suas instituições. Ela não é mais visível a olho nu como no século XIX, quando grevistas lutavam contra os patrões para obter melhores condições de trabalho. Mas ainda está aí, firme e forte. Hoje, ela se esconde por trás de legislações obtusas, reuniões secretas e jantares com o lobby da burguesia. E talvez não exista peça mais central na querela do que o Banco Central, o portador da chave do cofre e da senha do computador responsável pela emissão de moeda.

Vivemos tempos em que as frações dominantes da esquerda adotam uma postura conciliatória defensiva que, no fundo, não defende nada e acaba fortalecendo uma direita com configurações cada vez mais próximas do fascismo. É preciso, portanto, trabalhar na mobilização de um pensamento novo sobre o futuro e sobre os sujeitos da história. O apagamento do futuro enquanto categoria histórica que mobilizava o presente na direção do progresso comum é sintoma de uma era que incorporou a tese do “fim da história”, a tese de que não existe alternativa; é sintoma de uma sociedade cuja capacidade humana de imaginar outros futuros desejáveis foi colapsada. Deixamos de utilizar a gramática histórica da esquerda. Expressões como “projeto de desenvolvimento”, “socialismo”, “classe trabalhadora”, “indústria” e “nação” saíram do vocabulário usual e se tornaram démodé.

Cabe à classe trabalhadora criar flancos de movimento para acumular forças na direção de seus interesses; cabe aos partidos que representam a classe se empenhar nessa direção. Gabriel Galípolo, indicado pelo Presidente da República, defende abertamente um projeto de afastamento ainda maior do Banco Central em relação ao núcleo político eleito. Esse é mais um sinal de que a esquerda, enquanto força motriz dos avanços civilizatórios da história, de fato está morta no Brasil e precisa ressurgir. 

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

REFERÊNCIAS

1 – Disponível em: https://jornalggn-br.noticiaspernambucanjornalggn-br.noticiaspernambucanas.com/economia/noticia/2024-06/pec-promove-privatizacao-do-bc-e-pode-ter-custo-fiscal-ao-pais. o em: 08.06.2025

2 – Nesse sentido, ver FERREIRA, Pedro Cavalcanti; VELOSO, (Org.). Desenvolvimento Econômico: Uma Perspectiva Brasileira. Elsevier-Campus, 2012


Gustavo Livio – Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do Coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.

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