Luis Felipe Miguel
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

O estado da democracia brasileira, por Luis Felipe Miguel

É difícil pensar num futuro para a democracia no Brasil sem um projeto popular para sua reconstrução.

A greve geral de 1917 em São Paulo.

no Substack: Amanhã não existe ainda

O estado da democracia brasileira

por Luis Felipe Miguel

Na segunda-feira, participei do seminário “O futuro da esquerda: imes e desafios”, na Universidade de São Paulo, em mesa ao lado do prof. Jean Tible, com mediação da cientista política Camila Rocha.

Publico aqui a minha intervenção no evento:

Se eu tivesse que resumir a minha fala a uma única palavra, tendo como tema o título desta mesa, isto é, o estado da democracia brasileira, a palavra seria: “terminal”. Não é que eu goste de ser pessimista; são as circunstâncias que me obrigam a sê-lo. Tento seguir aquele dístico que Gramsci gostava de citar, mas a verdade é que o trabalho de aceitar o pessimismo da razão anda bem mais fácil do que o de sustentar o pessimismo da vontade.

Como, feliz ou infelizmente, me concederam um pouco mais de tempo e posso ir além de uma única palavra, vou desenvolver este veredito em três etapas. Primeiro, vou apresentar um entendimento do que foi o pacto que construiu a Nova República, a Constituição de 1988 e, enfim, aquilo que aceitamos como sendo a democracia no Brasil contemporâneo. Uma democracia limitada, cujas proteções se estendiam diversamente aos diversos grupos sociais, acomodada a todas as formas de dominação, mas a democracia que parecia possível nas nossas circunstâncias. Em seguida, vou discutir as razões da ruptura deste pacto, uma ruptura unilateral, decidida pelas classes dominantes. Por fim, vou tentar entender as razões pelas quais as forças que buscam a restauração do pacto democrático, capitaneadas pelo PT, são incapazes de alcançar sucesso, mesmo tendo conquistado novamente a presidência da República.

É importante lembrar que a democracia liberal foi produzida historicamente como o resultado de lutas dos grupos dominados. O projeto liberal da burguesia em ascensão na Europa não contemplava a democracia: previa uma disputa política restrita, com o voto censitário e a distinção entre a “cidadania ativa” dos proprietários e a “cidadania iva” do restante da população. Foi a luta da classe trabalhadora, das mulheres, das minorias raciais, que expandiu o direito de voto e universalizou o o (formal) à cidadania ativa.

Mas, no nosso caso, a democracia surge não como o resultado de lutas com horizonte emancipatório, mas como um modelo pronto para ser importado.

Quando a permanência da ditadura se tornou insustentável, tanto pela crescente insatisfação na sociedade quanto pelas tensões internas aos grupos que davam e ao regime, a alternativa já estava pronta. Não havia muita dúvida, por parte dos principais atores políticos, que deveríamos produzir uma democracia de tipo ocidental. Sim, restavam questões a serem debatidas, como presidencialismo ou parlamentarismo ou, então, sistemas eleitorais, mas o figurino básico estava lá: uma carta de direitos incorporada na Constituição, sufrágio universal, separação de poderes, freios e contrapesos, império da lei.

Quando as transições democráticas eram um tema central de estudo na Ciência Política, era comum ouvir a crítica à própria expressão, uma vez que transição seria um processo em aberto e não poderíamos definir de antemão que ela nos levaria a uma democracia. Eu entendo a crítica, mas creio que, no nosso caso, o final do processo, ao menos formalmente, não estava tão em aberto assim.

O que estou querendo dizer é que a debilidade histórica dos regimes democráticos no Brasil, na América Latina e, de forma mais geral, nos países do Sul Global não tem a ver com a “imaturidade” de suas populações ou a algum tipo de atavismo cultural como a “herança ibérica”, popularizada por Roberto DaMatta e outros. A questão é que, por aqui, o modelo foi implantado não a partir da pressão dos grupos subalternos, isto é, como um desafio à dominação, que exigiu concessões e acomodações, mas como um regime de dominação já testado e aprovado. Assim, o balanço entre a aceitação da ordem, pelos dominados, e as concessões em nome da paz social, pelos dominantes, é muito mais desequilibrado. Mesmo nos países centrais, o limite fundamental à democracia é a manutenção da acumulação capitalista; na periferia, com trajetória histórica diversa, as restrições são maiores, com margens bem mais reduzidas para a presença autônoma das classes populares nas arenas políticas e para concessões na forma do Estado social.

Isso não quer dizer que as lutas sociais não tenham importância no processo, mas que o modelo a ser implantado fica parcialmente desgarrado delas.

No nosso caso, a Assembleia Nacional Constituinte não ficou imune ao momento histórico. Ela tinha que responder à expectativa social de construção de uma sociedade diversa. Se “ódio e nojo à ditadura”, como disse Ulysses Guimarães em seu célebre discurso na promulgação da Constituição, foi um arroubo retórico, ao menos é verdade que ela foi escrita em diálogo com as esperanças e forças sociais que haviam levado à redemocratização. Muitas de suas características – como o garantismo jurídico, considerado excessivo por alguns – refletem a vontade de impedir a repetição das arbitrariedades do período ditatorial.

Ao mesmo tempo, a ditadura havia sido vitoriosa. O golpe de 1964 deu a si mesmo a tarefa de “limpar” o Brasil, por meio de expurgos na elite política, no sindicalismo e no serviço público, o que começou com os próprios militares. A liquidação da esquerda, ansiada pelo golpe, estava concluída em meados dos anos 1970, quando a cúpula do Partido Comunista Brasileiro foi dizimada. As organizações atingidas nunca foram capazes de se recuperar.

A destruição da esquerda marxista foi parte central da estratégia da abertura. Tratava-se de “eliminar aqueles considerados ‘irrecuperáveis’”, como escreveu Janaína de Almeida Teles; aqueles que não podiam existir no futuro que a ditadura desenhava. Esse futuro era o de uma “democracia” abastardada, em que a competição política era muito limitada e qualquer alternativa considerada demasiado radical pelos militares estava afastada de antemão. Quando o horizonte de possibilidades estivesse suficientemente , o princípio (formal) da soberania do voto popular poderia ser restabelecido.

Destas pressões contraditórias, um ímpeto transformador estabelecido sobre um terreno devastado pela ditadura, nasceu a Nova República.

Na Constituinte, era impossível recusar a percepção dominante de que era necessário garantir um amplo espectro de direitos e liberdades e mesmo de que da democracia deveria necessariamente brotar uma sociedade menos injusta – o que, na linguagem da época, era chamado de “resgaste da dívida social”. Por outro lado, havia a manutenção de muitos recursos de poder nas mãos dos militares, capazes de impor seu veto em questões sensíveis a eles. E muitos grupos dentro da própria esquerda consideravam que a edificação dos conjuntos de instituições próprios da democracia liberal (eleições livres, direitos individuais, separação de poderes) tinha primazia absoluta. A construção de um país mais justo e a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, para nem falar do socialismo, viriam das lutas possíveis dentro do novo quadro de liberdades.

Com exceção da questão militar, a Constituição de fato delineou uma ordem liberal democrática bastante avançada. Ainda assim, o Brasil viveu de crise em crise, com escândalos diversos se sucedendo e dois impeachments presidenciais (é verdade que muito diversos entre si), em pouco mais de duas décadas. Parte da explicação pode ser atribuída à fragilidade das instituições representativas.

Não é só no Brasil. A representação política é necessariamente imperfeita, uma vez que a especialização funcional dos representantes os afasta de suas bases. Só que é uma imperfeição desigual, que afeta de forma muito mais pesada os grupos dominados, como a classe trabalhadora, as mulheres, a população negra, os povos indígenas, os grupos LGBT, que têm maiores dificuldades para ver seus interesses e suas perspectivas espelhados nos espaços de poder. A partir do final do século XX, a crescente consciência desse problema levou a uma crise de confiança nas democracias representativas.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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3 Comentários

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  1. Projeto popular? Esqueçam. Um dos problemas da esquerda democrática (ou seja, a esquerda que participa de eleições), é a crença em pactos. A esquerda democrática se utiliza dos pactos como estratégia, enquanto, para o outro lado, trata-se apenas de uma tática de circunstância.
    Um segundo problema é a incompreensão do peso do ado colonial. Pensa-se que, uma vez declarada a independência, a colônia se transforma em nação, e torna-se, de fato, independente. Ora, a colonização é um ato de violência; uma vez identificada a elite (ou grupo social dominante) da terra a ser colonizada, oferece-se a essa elite a manutenção de seus privilégios (principalmente, a de explorar o trabalho dos outros), além de algumas ilusões de ordem supostamente práticas (principalmente, a da autodeterminação). Ao restante, o que sempre tiveram: trabalho, sem recompensas, apenas obrigações. Imaginar que um tal estado de coisas possa ser abolido, ou mesmo mitigado, é a essência da crença em pactos. E aí temos o círculo vicioso que prende, até hoje, o mundo colonizado nessa ilusão de poder livrar-se de seus problemas pela via do diálogo, do pacto.
    Para o outro lado – representante do poder antigo da metrópole, ou, simplesmente, remanescente – é salutar fazer pactos; diminui a temperatura política, arrefece o ímpeto reivindicatório, ou seja, ganha-se tempo para manter tudo como está. Ao fim de uma sequência de engodos, a esquerda democrática estará, novamente, sedenta por pactos – um segundo círculo vicioso que prende, até hoje, etc.
    Lula, ou talvez apenas os seus iradores mais empedernidos, parece querer um status histórico semelhante ao de Gandhi. Este, ao longo de toda sua vida, ainda que lutando pela independência de seu país, permaneceu a vida toda um homem de sua casta, carregando em si todos os preconceitos desta, e a defesa de suas conveniências. A sua não-violência era, apenas e tão somente, um plano de restituir, às castas indianas, o controle e a autonomia do estado; jamais foi uma questão de espírito público, no sentido que nós, aqui no Ocidente, conferimos a essa expressão – a rigor, isso não existe, por aquelas paragens. O que os ingleses encontraram, ao chegar lá, não foram índios vivendo felizes em comunhão com a natureza, mas uma sociedade milenar, altamente estratificada (como é até hoje), e com uma autodeterminação a resgatar; aqui a autodeterminação era a de Portugal, posteriormente subjugada pelos ingleses, depois pelos americanos. Lula, que não pertence – e não quer pertencer – à casta nenhuma, optando pela forma de luta da esquerda democrática (eleições) acaba por fazer o mesmo jogo de Gandhi; melhor seria se mirasse em um papel como o de Nehru. Acredita em pactos que, num futuro não determinado, diminuirão o abismo social e a desigualdade, sem restaurar – e muito menos criar – autodeterminação. O que ele, e a esquerda democrática, não enxergam, ou não querem enxergar, é que o abismo social, e a desigualdade, são os pilares que sustentam a posição do outro lado. Ou seja, daqueles com quem se quer fazer um pacto.
    Esqueça o projeto popular, amigo. Somos uma democracia representativa. E, para esta, é muito mais prático – e vantajoso – fazer pactos. Que são apenas uma forma de manter-nos como o que sempre fomos: colônia, e ex-colônia. O que vem a dar no mesmo. Por isso a democracia é mais facilmente percebida na Europa – a parte da população humana a ser explorada não mora lá, mas aqui, onde eles não precisam mais estar, fisicamente. Quanto aos EUA, não são, nem nunca foram, uma democracia.

    1. Não aceito o valor da indenização
      Dano Moral
      O dano moral indenizável se configura quando há um prejuízo íntimo tão grande que gera um sofrimento interno inável.
      A BÍBLIA
      GÊNESIS
      A CRIAÇÃO
      1 Quando Deus iniciou a criação do céu e da terra, a terra era deserta e vazia, e havia treva na superfície do abismo: o sopro de Deus pairava na superfície das águas, e Deus disse: “que a luz seja!”
      Luz
      Mudar
      Dano Moral Reflexo
      O dano moral reflexo é um ato
      Muito sofrimento

  2. Numa perspectiva idealista, a busca pela democracia é uma necessidade mundial. No entanto é importante termos em mente que não existe e nem nunca existiu sistema democrático em nenhum lugar no mundo, a não ser que consideremos como democracia, a organização nas sociedades que viviam de caça e pesca. Hoje existe vários paises no mundo que se denominam democracias por realizarem pleito eleitorais periodicamente, mesmo havendo uma enorme quantidade de manipulações na realização dos pleitos. É importante salientar que nestas pseudo democracias, parte (geralmente menos de 50%) da população, escolhe os que vaõ mandar e a partir daí perdem a condição de mandante. Portanto, para ser democracia o povo tem que mandar, coisa que na prática nõa existe. Assim, dentro do marco legal existente, só resta ao povo se organizar em movimentos que lutam para arrancar concessões sócio econoômicas dos verdadeiros donos das ditas democracias.

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