O esvaziamento do Itamaraty e o interesse nacional, por Rubens Barbosa

A projeção internacional do Brasil é, em grande parte, resultado da atuação diplomática, tanto bilateral como, sobretudo, multilateral.

Reprodução via villelastay

O esvaziamento do Itamaraty e o interesse nacional

por Rubens Barbosa

A política externa, nos últimos 200 anos do Brasil independente, sempre teve um papel muito relevante na defesa do desenvolvimento econômico, dos interesses concretos do país e de sua projeção externa, até mesmo com uma atuação muitas vezes acima da capacidade de seu poder efetivo.

Alguns dos exemplos em que a diplomacia teve papel relevante na defesa do interesse nacional foram a manutenção da integridade territorial, depois de termos a Independência em 1822 ameaçada pela ação das Cortes de Lisboa; o equilíbrio geopolítico na Bacia do Prata nas primeiras décadas do século XIX até depois da Guerra do Paraguai nos anos 1860; e a definição pacífica, por meio de negociações, das fronteiras definitivas do país.

A projeção internacional do Brasil é, em grande parte, resultado da atuação diplomática, tanto bilateral como, sobretudo, multilateral. Em um mundo em grande e rápida transformação e com as polarizações internas, as prioridades definidas no início do governo atual são corretas e representam o que se espera de uma das dez maiores economias do mundo: ter voz no cenário internacional, influir nas discussões sobre meio ambiente e mudança de clima e manter uma política afirmativa na América do Sul. Essas são algumas das políticas que de fato interessam ao país.

Nos dias de hoje, visto do ângulo dos interesses permanentes do Brasil e não do governo de turno, o Brasil e o mundo mudaram com a nova economia (menos liberalismo e mais protecionismo) e a nova ordem internacional em constante mutação pelo impacto das políticas de Donald Trump, das guerras na Europa e no Oriente Médio, onde há uma ameaça de escalada se o Irã for atacado por Israel. A tensão crescente entre os Estados Unidos e a China pela hegemonia global no século XXI, agravada pelas medidas restritivas do governo Trump no comércio exterior e pela rápida evolução tecnológica, com reflexos na geopolítica, está forçando todos os países a se ajustarem às novas demandas e novas realidades. No tocante à América do Sul, que o secretário da Defesa norte-americano chamou de “quintal dos EUA”, as políticas e declarações públicas do presidente norte-americano no sentido de “não permitir a crescente presença da China na região e de que talvez os países latino-americanos tenham de optar entre os EUA e Beijing”, colocam novos e importantes desafios para o Brasil. O ressurgimento da Doutrina Monroe, enterrada pelo governo norte-americano em pronunciamento do secretário John Kerry em 2014, pode ser exemplificado pelas pretensões sobre o Canal do Panamá, pelas declarações em relação à Venezuela e pelas ameaças do Departamento de Estado com respeito às remessas de recursos financeiros por palestinos para o Irã a partir da tríplice fronteira entre o Brasil, Argentina e Paraguai.

O fator externo hoje não pode mais ser ignorado na definição da política econômica, financeira, de defesa e, para países como o Brasil, da política externa. Quatro milhões de brasileiros em todos os continentes esperam assistência não só para providências pessoais, mas sobretudo para apoio em momentos de crise nos países em que vivem. O cenário global, para países do porte do Brasil, apresenta novos e significativos desafios geopolíticos que, em muitos casos, parecem ser ignorados internamente como se o país fosse imune ao que acontece no exterior, seja nas áreas econômica, de defesa, saúde, inovação e tecnologia. A pandemia, as guerras na Ucrânia e em Gaza, a rápida mudança na ordem internacional com o isolacionismo norte-americano, a crescente tensão entre os Estados Unidos e a China, além do reaparecimento da Rússia, transformaram o cenário global, colocando os países, e o Brasil não é exceção, cada vez mais dependentes do exterior em muitas áreas, inclusive tecnológicas e industriais. O 5G e a Inteligência artificial, as restrições derivadas de preocupações protecionistas e ligadas ao meio ambiente e mudança climática, sem falar nas questões de segurança e de defesa, junto com negociações de novos acordos de livre comércio com a formação de blocos políticos e econômico-comerciais, são novos desafios e algumas das realidades que qualquer governo brasileiro terá de enfrentar nos dias de hoje e num futuro previsível.

Neste momento de polarização interna, deve ser lembrado, tanto aos governantes quanto aos diplomatas do Itamaraty, que a diplomacia, como carreira de Estado, tem um dever de lealdade ao governo legítimo em vigor ao implementar suas decisões, sem evidentemente ser partidária e muito menos militante do partido e do governo no poder. O embaixador, como representante do presidente da República, do governo e de seus ministros, é o responsável pela autoridade do Estado no país em que está acreditado, e uma relação de confiança deve existir como pressuposto de seu trabalho.

O Itamaraty é o principal assessor do presidente da República para a formulação e execução da política externa e sempre foi o órgão que coordena a participação do Brasil, seja no âmbito bilateral quanto nos organismos multilaterais. Com alternância de governos, é normal haver mudanças de ênfases e prioridades na política externa. O problema hoje é que, com as mudanças internas na política brasileira, o Itamaraty vem sofrendo um continuado processo de esvaziamento, sem deixar de executar um trabalho sério e competente.

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que ou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação e na facilidade dos contatos entre chefes de estado com conversas e encontros frequentes.

Mais recentemente, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa que a afastam dos interesses do Estado brasileiro, acompanhadas pela redução de recursos orçamentários. A atração de lealdades ao presidente, ao ministro e às ideias por eles defendidas, inclusive as relacionadas com a desigualdade e a promoção da diversidade, com ênfase em gênero e raça, e às crescentes dificuldades enfrentadas pelos diplomatas em termos de fluxo de carreira – que tornaram o seu trabalho mais difícil e suas funções diplomáticas mais burocráticas e menos estimulantes – não podem resultar em prejuízo para a instituição e deixar para um segundo plano as prioridades internas, relacionadas com os rumos da política externa e com a contribuição efetiva no desempenho de suas missões.

A formulação e a execução da política externa têm ado por um processo disfuncional em que os interesses nacionais são confundidos com interesses setoriais e políticos. Um recente ministro do exterior aceitou que o Brasil fosse considerado um pária internacional por defender posições políticas vigentes no governo.

Ao longo dos últimos anos, o Itamaraty perdeu espaço em temas como comércio exterior (mesmo no Mercosul), meio ambiente e mudança de clima, agenda de costumes, direitos humanos, entre outros. No governo atual, o Itamaraty começou perdendo a Apex e a Camex e enfrentou, com limitado sucesso, o desafio de tentar coordenar as ações externas das pastas de Meio Ambiente, Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial e Povos Indígenas. Além disso, quando ocorre uma duplicidade de influência na formulação e execução da política externa, o desempenho diplomático fica afetado, como ocorreu no governo Bolsonaro e está ocorrendo no atual governo. Isso se vê na dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro das Relações Exteriores, com a perda de espaço nas secretarias internacionais dos ministérios, na ação subnacional, na marginalização no exterior dos embaixadores nas reuniões no âmbito de chefe de Estado, na perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras). Em maio de 2025, um membro do Judiciário se dirigiu diretamente a um embaixador estrangeiro dando um prazo para resposta a um questionamento, ignorando o canal apropriado, o Itamaraty. A Casa Civil e o Ministério do Planejamento assumiram, em vários momentos, o papel de coordenadores em matérias de competência do Itamaraty (viagem presidencial à China em maio), COP 30 (logística), infraestrutura regional. O Congresso Nacional tentou no ado e poderá retomar a ideia de indicação de congressistas para chefiar missões diplomáticas no exterior sem a perda de mandato, o que esvaziaria ainda mais a Chancelaria.

A situação tem se agravado pelas ações e pronunciamentos improvisados dos presidentes, desde Bolsonaro a Lula, no tratamento de delicadas questões externas, com claros objetivos de política interna (convocação de embaixadores para ouvirem críticas às urnas eletrônicas e o tratamento de regimes autoritários na região, em especial a Venezuela). Sem preocupação com a repercussão internacional, as declarações mostram inconsistências da política externa, colocam em risco sua credibilidade e prejudicam a ação diplomática na defesa do interesse nacional.

A questão que se coloca é como ajustar o soft power brasileiro nas áreas em que se reconhece sua influência (meio ambiente, segurança alimentar, transição energética) e suas limitações pela ausência de excedente de poder (o Brasil não é uma potência militar). A ausência de resultados na pretensão de criar um grupo para acelerar a busca da paz na Guerra da Ucrânia, na proposta para o cessar-fogo em Gaza durante a presidência brasileira no Conselho de Segurança da ONU, em ser uma ponte entre os países desenvolvidos e o Sul Global ou influir na modificação da governança global (composição do Conselho de Segurança da ONU) mostram os limites da influência do Brasil no cenário internacional. A participação de Lula nas comemorações do Dia da Vitória em Moscou despertou reações negativas de alguns países bálticos, que não autorizaram o sobrevoo do avião precursor com a presença da mulher do presidente, em clara manifestação de contrariedade pela visita durante a Guerra da Ucrânia, graças à percepção equivocada de que a posição do Brasil é favorável a um dos lados. Em algumas dessas ações, a Chancelaria não foi ouvida, ou se foi, a instituição deve ter-se colocado contra, mas a decisão foi tomada sem o conselho do Itamaraty. Em mais um exemplo de esvaziamento do Itamaraty, depois de meses de tentativa frustrada de convencer Maduro a liberar cinco venezuelanos exilados na embaixada argentina sob a guarda brasileira, os Estados Unidos, em operação de resgate bem-sucedida retirou os venezuelanos e os transportou para território norte-americano, colocando a política externa brasileira em xeque e mostrando o isolamento do governo brasileiro na região.

Isso significa que estamos assistindo o fim da presença do Itamaraty e a perda de espaço das embaixadas no exterior? Fora dos quadros do Itamaraty há quase 20 anos, tenho um distanciamento que me coloca em posição de oferecer algumas considerações pessoais longe de interesses corporativos ou posições defensivas, mas apenas voltadas para o que me parece mais relevante ao país e para a Chancelaria.

A experiência do Itamaraty, reconhecida internacionalmente e agora percebida com baixa credibilidade por sua reduzida influência, não pode ser deixada de lado. Exemplos da atuação discreta e eficiente do Itamaraty em situações delicadas para o governo podem ser citadas, como a manutenção de canal aberto com todo o governo argentino, apesar de não haver qualquer contato entre os presidentes Lula e Milei. A eleição de Donald Trump e as posições públicas do presidente Lula contra o novo presidente tornaram difícil o estabelecimento de canais de comunicação de Brasília com a Casa Branca e entre o Itamaraty e o Departamento de Estado, que agora começa a ser desobstruído pelo trabalho discreto do Itamaraty. Não fosse a coordenação eficiente do Itamaraty, a reunião do G20 não teria alcançado o sucesso que obteve com o reconhecimento de todos. O mesmo vai acontecer com as reuniões do Brics e da COP 30, que, a exemplo do G20, serão coordenadas por altos funcionários do Itamaraty.

Como sempre fez no ado, o Itamaraty, com seu corpo de competentes funcionários, poderá, de maneira eficiente, ajudar a interpretar o momento de transição para um mundo pós-ocidental, como acentuado por Lula na reunião do G7 em 2024. Nesse contexto, em vez de esvaziar a instituição, os governos teriam de fortalecer a estrutura da Chancelaria, com reforço orçamentário e humano, para que possa atuar como uma antena de captação dessas mudanças e oportunidades, um instrumento de negociação em novas áreas (tecnologia e inovação), um braço (assistência técnica) para o exercício de soft power na América Latina e na África pelo fortalecimento da Associação Brasileira de Cooperação. O setor cultural, outra área em que o soft power brasileiro foi um fator importante no ado, deveria ser mais bem cuidado para evitar as dificuldades que acontecem hoje com a programação dos eventos na celebração do ano Brasil-França. Esqueceram de incluir a palavra cultural depois do termo “Instituto” e antes do nome de Guimarães Rosa, para tornar claro e conhecido o objetivo de trabalho do órgão no Brasil e no exterior. Um e eficiente para a ação de outros órgãos federais, estaduais e de apoio à comunidade brasileira no exterior e aos empresários são elementos adicionais da ação moderna do Itamaraty que não estão sendo plenamente atendidos. Em um mundo de incertezas, não mais se podem ignorar as atuais vulnerabilidades das Forças Armadas e a necessidade do fortalecimento da indústria nacional de defesa. Seguindo o exemplo do Barão do Rio Branco, quando chanceler, torna-se urgente incluir a defesa na discussão sobre o lugar do Brasil no mundo e sobre seus objetivos de médio e longo prazos, acima da divisão e da polarização interna. Nesse sentido, seria urgente retomar as reuniões regulares de coordenação entre o Itamaraty e o Ministério da Defesa, interrompidas nos últimos dois governos.

Ao contrário do que está acontecendo agora, o Itamaraty tem de ser revigorado e recuperar sua competência para a articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior e sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais. Como instituição, deve fazer valer sua competência e espírito público para enfrentar esses desafios que impactam a projeção do Brasil no mundo. Os governos de turno não podem improvisar na política externa.

Para tanto, o Itamaraty tem de renovar seus métodos de trabalho, tornando-os mais modernos à luz dos novos eixos políticos e econômicos, bem como estimulando a especialização em áreas geográficas ou setores. A centralização das iniciativas e das decisões, que caracterizaram algumas das últimas gestões, não deveria ser repetida, e o processo de renovação deveria voltar a dar relevância ao trabalho das divisões, dos departamentos e das secretarias, com autonomia e liberdade, para fazer estudos e apresentar propostas inovadoras de políticas para a chefia da Casa. Nesse contexto, deveria ser estimulada uma aproximação maior da Funag com think tanks e instituições da sociedade civil para debater diferentes aspectos da política externa e, sobretudo, o lugar do Brasil no mundo neste momento de grandes transformações.

O Ministério das Relações Exteriores se ressente da falta de liderança proativa no governo e no próprio Itamaraty já há alguns anos, mas, sobretudo, da ausência de uma política externa com visão estratégica de médio e longo prazos sobre o lugar do Brasil no mundo para responder aos desafios da nova economia e da nova ordem global. Deveria estar no topo da agenda diplomática a integração regional com os países sul-americanos, com projetos de infraestrutura para a abertura de canais de transporte no Pacífico e com propostas de cooperação entre os setores privados para a formação de cadeias produtivas de valor regionais. No tocante à Ásia – o maior mercado regional, com 50% do total das exportações brasileiras –, não precisamos de discursos retóricos, e sim de acordos práticos. A política de terra arrasada dos EUA na África, com o fechamento de embaixadas e cortes em programas de ajuda, abre para o Brasil um espaço importante para a formulação e execução de uma política de cooperação técnica e de aproximação comercial com os países daquele continente.

Espera-se que o Itamaraty possa superar o risco que corre hoje de perder ainda mais espaço e de deixar de ser visto como um exemplo de excelência dentro do serviço público brasileiro. Como instituição de Estado, ele não pode se transformar em mais um exemplo de burocracia que apenas defende os interesses pessoais imediatos de seus membros, como em geral acontece nos três poderes da istração Pública. Como instituição de Estado, o Ministério das Relações Exteriores deve ser preservado para a defesa do interesse nacional. A tradicional política definida pelo Itamaraty de equilíbrio e equidistância, sem tomar partido nas questões que dividem os países para a defesa do interesse brasileiro, deveria voltar a ser seguida e reforçada, acima de considerações ideológicas e partidárias.

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e em Washington

(artigo publicado pela revista Insight Inteligencia, julho de 2025)

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