INCT - InEAC Instituto de Estudos Comparados em istração de Conflitos
Há mais de 15 anos, o Instituto de Estudos Comparados em istração de Conflitos (INCT-InEAC-UFF) vem trabalhando com pesquisas sobre a diversidade das formas institucionais de istração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de Segurança Pública e de Justiça Criminal. Os trabalhos são produzidos através de uma rede nacional e internacional de programas de Pós-Graduação, grupos de pesquisa e de pesquisadores espalhados por sete estados do Brasil e nove países. Esta coluna se relaciona com os esforços dessa rede em refletir sobre temas da pauta política e social brasileira, visando a contribuir com o debate público e difundir ciência para fora dos muros da universidade.

Censo: como a diversidade religiosa é retratada no Brasil, por Miranda & Soares Pinto

Até 1980, as religiões de matriz afro-brasileiras não apareciam explicitamente nas estatísticas, sendo classificadas como “espiritismo”.

Reprodução

O que o Censo fala e cala: como a diversidade religiosa é retratada no Brasil

por Ana Paula Mendes de Miranda & Andréia Soares Pinto

O censo demográfico é uma pesquisa estatística  destinada a realizar uma contagem da população, em um determinado território, para saber suas características sociodemográficas e condições de vida. É uma espécie de “fotografia” da população.

No Brasil, o Censo costuma ser realizado a cada 10 anos, desde 1872, durante o reinado de D. Pedro II. Na época, o retrato da diversidade era uma população de 84,8% de pessoas “livres” e 15,2% de pessoas escravizadas, que se dividia em 805.170 homens e 705.636 mulheres. Diz-se que esses dados foram utilizados, pela então Diretoria Geral de Estatística (o “IBGE do Império”) para estimar o tempo que seria necessário para a escravidão ser extinta no Brasil, mas não há demonstração de como isso influi na vida política da época.

Em termos de religião tínhamos 99,7% de católicos e 0,3% de “acatólicos”. Nesse pequeno grupo estavam representados os imigrantes, de origem europeia, que eram protestantes. Sobre os migrantes, forçados, de origem africana pouco se pode aprender a partir do Censo, já que houve um “apagamento” da origem desses estrangeiros provenientes de África pela falta de precisão sobre as nações de origem.

Em relação aos escravizados sabe-se que os seus “senhores” declaravam que todos eram católicos como forma de considerá-los “civilizados”. Dentre os africanos livres há informações de que 184 foram registrados como de religião “diferente do Estado”, pois o catolicismo era a religião oficial.

Menos se sabe sobre  os indígenas, mas imagina-se que tenham sido contabilizados da mesma forma. Não era perguntado qual o idioma falado, porque o retrato que se pretendia produzir do Brasil era de coesão: um país branco, católico e falante do português, que buscava se tornar um país moderno e em desenvolvimento.

No dia 6 de junho de 2025 o IBGE divulgou os dados amostrais do Censo 2022 sobre religião. A apresentação tentou destacar que se tratava da primeira vez que o Censo teria observado maior diversidade. Será?

O levantamento censitário é, certamente, um instrumento necessário para o conhecimento da diversidade religiosa e, a partir dele, pensar as tendências no Brasil, mas os resultados de 2022 deixam dúvidas significativas quanto a possíveis apagamentos.

A identificação religiosa no Censo 2022

O censo demográfico de 2022 utilizou dois tipos de questionário: o básico e o da amostra. O questionário básico, com 26 perguntas, foi aplicado a todos os domicílios do país. Já o da amostra, com 77 perguntas, foi dirigido a cerca de 11% dos domicílios brasileiros – aproximadamente 8,5 milhões de residências. A pergunta sobre religião estava apenas nesse questionário da amostra. Por isso, embora a religião apareça nos últimos Censos, os dados não se referem a toda a população, mas são estimados com base nessa amostra.

A pergunta sobre religião teve duas versões, pretensamente com o mesmo objetivo: “conhecer as religiões ou cultos declarados pela população e o número de seus adeptos”.

A identidade étnica foi considerada apenas para os povos indígenas. Se a pessoa mora em uma área indígena (chamada de “setor tipo 5” pelo IBGE) ou em uma terra indígena oficial, a pergunta foi: “Qual é a sua crença, ritual indígena ou religião?”. Para o restante da população, a pergunta era: “Qual é a sua religião ou culto?”.

Essa diferença nas perguntas traz um problema metodológico: nenhuma religião está ligada apenas a um grupo étnico ou pode ser limitada a uma região do país.

Os dados do Censo mostram isso. No Norte do Brasil, onde vive a maior parte da população indígena (67,2%), as religiões evangélicas têm forte presença. Estados como Acre (44,4%), Rondônia (41,1%), Amazonas (39,4%) e Amapá (36,4%) são os estados com maiores percentuais de autodeclaração evangelizada no país, respectivamente.

Até 1980, as religiões de matriz afro-brasileiras não apareciam explicitamente nas estatísticas, sendo geralmente incluídas na classificação “espiritismo”. A adoção da classificação “Umbanda e Candomblé”, para se referir às religiões de matriz africana também não dá conta da complexidade desse universo. Embora sejam as mais conhecidas e difundidas no país, há outras tradições com raízes africanas e que expressam a diversidade cultural do país. O reconhecimento da diversidade deveria deixar de lado o apagamento de povos africanos que originaram as tradições e religiosidades afro-brasileiras, e também representá-las em sua diversidade.

Que diversidade é essa?

A novidade da reformulação da pergunta sobre religião não foi suficiente para dar conta da diversidade religiosa no Brasil. Para isso era necessário que se mudasse mesmo o modo de perguntar para toda população, a fim de que se possa compreender como a identidade religiosa é plural. Historicamente, a estatística tende a apagar a heterogeneidade e a complexidade dos fenômenos sociais. Mas, considerando-se os estudos sobre religiosidade, diversidade e as novas tecnologias informacionais, não é impossível se construir um retrato da sociedade brasileira mais adequado à sua diversidade. Os dados divulgados pelo Censo de 2010 já traziam argumentos suficientes para se analisar melhor a distribuição da religiosidade no Brasil.

Figura 1 – População residente com 10 anos ou mais e Religião (Censo 2010)

Fonte: IBGE – Censo Demográfico. App Censo 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/apps/mapa/.

Uma conquista tem sido o modo pelo qual o Censo faz as perguntas – “abertas” – os entrevistados respondem sem escolher entre opções pré-definidas. No Censo 2010, havia a classificação “múltiplo pertencimento”, que agora ou a ser chamada de  “multirreligiosidade”, para a classificação de entrevistados que declaram mais de uma religião ou culto, o que é muito importante para as análises, mas ainda não é suficiente para dar conta da diversidade.

A não divulgação de dados desagregados impossibilitou saber, portanto, quantas pessoas têm múltipla pertença religiosa, como isso acontece na prática, especialmente em áreas indígenas. Isso seria uma informação fundamental para compreender os possíveis conflitos entre diferentes identidades religiosas nesses territórios, provocados pelo processo de conversão, mesmo que não sejam dados estatisticamente representativos.

Em artigo publicado na Folha de São Paulo, em 09/06/2025, Juliano Spyer denuncia que erros de classificação, provocados pela falta de investimentos no IBGE no governo ado, resultaram na impossibilidade de se desagregar os dados sobre os evangélicos,  prejudicando profundamente a compreensão da desaceleração do crescimento desse segmento. Tais erros afetam também a possibilidade de se construir uma geografia mais detalhada da religiosidade brasileira e das identidades em disputa, para além da constatação (Quadro 1 e Gráfico 1) da perda de participantes para o catolicismo romano e um crescimento do protestantismo/evangelismo, que não afeta o retrato de um país segue majoritariamente cristão.

Entre 1980 e 2010, o panorama religioso brasileiro ou por uma reconfiguração significativa, marcada pela expressiva queda do número de católicos — de 89,2% para 64,6%, com a maior redução entre 1991 e 2000 — e pelo crescimento do protestantismo, especialmente de igrejas evangélicas, que ou de 6,6% para 22,2%, além do aumento gradual de outros grupos menores, como o espiritismo, que foi de 0,7% para 2%. A mudança do ritmo desse processo não será compreendido com números gerais.

Em particular, também chama a atenção a cada Censo o crescimento no grupo de pessoas que se declararam sem religião, ando de 1,6% para 8,0% da população. Salienta-se que essa é uma categoria censitária que tem sido utilizada para identificar as pessoas que não se reconhecem vinculadas a uma determinada denominação religiosa, mas também podem incluir as pessoas ateias e agnósticas, delineando um cenário bastante diferenciado.

A diversidade religiosa precisa ser compreendida pela existência plural de sistemas de crença, práticas e instituições religiosas, mas a transformação desse universo em categorias censitárias não correspondem a meras contagens, mas construções simbólicas e políticas, que precisam refletir algumas dimensões da vida social, em constante transformação, sem revelar hierarquias ou concepções de pureza, já que todas as religiões possuem expressões múltiplas.

Umbanda e Candomblé: o crescimento e o apagamento das tradições de matriz africana

Se a fotografia do Brasil construída pelo Censo de 2022 é a de um país cristão, a forma pela qual a interpretação segue sendo feita sobre o recorte por raça/cor — que dissocia “pardos” de “pretos” — evidencia apagamentos das religiões de matriz africana, que resultaram em manchetes do tipo: “Religiões de matriz africana têm maioria branca, revela Censo”.

A desconsideração de que a categoria parda é uma categoria censitária faz pensar que a população negra brasileira seja menor do que efetivamente é. A análise que precisa ser feita para se compreender as religiões de matriz africana precisa ser a soma de pessoas pardas e pretas, que resulta no seguinte resultado: 56,4%. Ou seja, a maioria dos pertencentes às religiões de matriz africana segue sendo de pessoas negras.

Outro aspecto a ser ressaltado é que o crescimento de pessoas autodeclaradas de matriz africana é fruto de um longo processo de mobilização – “quem é de axé diz que é” – iniciado antes do Censo de 2010, e tem produzido efeitos nessas comunidades, deixando de se apresentar como espíritas ou católicos, para se assumir como uma religiosidade afrocentrada.

Quanto à hipótese de o crescimento acontecer pelo aumento da participação de pessoas brancas, isso não pode ser aferido a partir dos dados divulgados, muito menos se concluir de que se constituem a maioria dessas religiões. Essa é uma leitura apressada e racista.

Outro aspecto que precisa ser considerado é a associação entre os endereços de estabelecimentos religiosos por tipo de segmento religioso, com dados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE). Para além das críticas que já foram feitas à análise, que põe em xeque a ideia de que haveria mais estabelecimentos religiosos registrados do que estabelecimentos de ensino e de saúde, o modo pelo qual os dados foram divulgados ignora totalmente a forma como os terreiros são considerados pelos povos tradicionais de matriz africana.

Com relação ao crescimento de declarações de pertencimento ao segmento “Umbanda e Candomblé” é preciso lembrar que, no cenário brasileiro, os anos de 2017 e 2022, foi um período marcado por um aumento significativo dos casos de intolerância/racismo religioso e perseguições aos terreiros. Esse cenário adverso, sem apoio oficial, foi palco de um crescimento significativo de mobilizações locais e nacionais de autorreconhecimento.

Afirmar-se como pertencentes às religiões de matriz africana foi, e segue sendo, um forte movimento de resistência. Essa afirmação identitária, em meio a violências simbólicas e materiais, reforça a urgência de se pensar o Censo como ferramenta não apenas estatística, mas também política. No Brasil das violações, os terreiros continuam existindo e resistindo, lutando contra os apagamentos produzidos tanto nas ruas quanto nas formas de representação oficial, como os dados censitários.

O Censo 2022 representou um avanço na tentativa de mapear a diversidade religiosa brasileira, mas ainda peca por não captar a riqueza empírica das religiosidades de matriz afro com sua pluralidade de pertencimentos. É urgente que futuras edições considerem perguntas que tratem igualmente toda a população, privilegiem dados desagregados e respeitem a complexidade das configurações identitárias e territoriais das tradições religiosas no Brasil.

Provavelmente trazer ao questionário da amostra perguntas distintas sobre religião pode ter prejudicado o tratamento dos dados estatísticos, mas acreditamos na possibilidade de aproveitamento dessas informações em pesquisas qualitativas. Para isso, é preciso que as divulgações do IBGE sejam mais transparentes quanto ao alcance dos dados.

Por último, seria importante deixar duas considerações que atentam para a relação entre religião e etnia, raça ou cor. A primeira consideração é que se esse aspecto não fosse relevante, não se teria optado por formular uma questão específica para pessoas de identidade indígenas ou em localidades indígenas, mesmo que não tenha sido da forma mais acertada na nossa opinião. A segunda consideração é sobre a relevância da inclusão da pergunta sobre religião no questionário básico do censo demográfico, como feito no Censo de 1872.

Ana Paula Mendes de Miranda – (Professora de Antropologia da Universidade Federal Fluminense / Coordenadora do Ginga-UFF/ Pesquisadora do INCT-InEAC)

Andréia Soares Pinto – (Doutoranda em Antropologia da Universidade Federal Fluminense / Pesquisadora do Ginga-UFF e do INCT-InEAC)

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